Na Eureciclo, uma solução de mercado para o caos da reciclagem

Startup que criou créditos de reciclagem caminha para dobrar faturamento em 2020 e fechou uma captação série A em plena pandemia

Na Eureciclo, uma solução de mercado para o caos da reciclagem
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O Brasil está se afundando em uma montanha de lixo. Estimativas otimistas indicam que o país recicla menos de 5% de todo o lixo que resulta do consumo. 

O percentual é pífio e muito distante de cumprir os 22% mínimos estabelecidos pela lei nacional de resíduos sólidos, que por si só já estão longe do ideal.

É nesse contexto aterrador que a Eureciclo vem se destacando como uma solução para tentar botar ordem no caos da reciclagem nacional.

Fundada em 2016, a startup se inspirou no modelo europeu para trazer para o Brasil o conceito de créditos de reciclagem, que permitem a compensação do lixo colocado no ambiente pelas empresas de consumo.

“Nós cobramos do produtor dos bens de consumo para fazer o serviço de retirada do lixo no lugar dele e pagamos aos elos da cadeia de reciclagem”, resume Thiago Pinto, co-fundador e CEO da Eureciclo.

A Eureciclo não rastreia as embalagens exatas de cada marca, mas atesta a remoção de uma quantidade equivalente do mesmo material. Com emprego de tecnologia de blockchain, a startup consegue fazer o registro de notas fiscais de reciclagem e transformá-las em títulos negociáveis, que podem ser vendidos às empresas. 

O sistema praticamente elimina o risco de duplicidade de contagem de um mesmo material e ataca as duas pontas do problema.

De um lado, ajuda a formalizar a cadeia de reciclagem e remunerá-la pelo serviço de remover os resíduos do meio-ambiente e encaminhá-los adequadamente. Ao criar os créditos, a Eureciclo ajuda a atribuir um preço a esse serviço ambiental, que vai além do simples valor dos materiais recuperados.

De outro lado, consegue entregar para as empresas uma solução pronta para o cumprimento das metas de remoção do lixo resultante dos produtos que vendem, sem que para isso precisem criar suas estruturas proprietárias de logística reversa. 

Tudo somado, é impacto socioambiental na veia.

O selo Eureciclo passou a ser cobiçado por marcas que querem se conectar com consumidores cada vez mais conscientes do lixo que geram para o planeta. Mas nem todas as empresas que compram os créditos levam o selo. Para ter direito a exibi-lo é preciso comprovar adequação à lei de resíduos em todos os Estados de atuação.

Atualmente, 2700 empresas já compram os créditos da Eureciclo em 24 Estados e no Chile, sendo que 60% dos clientes está em São Paulo.

Se no começo os nomes eram pouco conhecidos ou de nichos com apelo ambiental, hoje marcas como Arezzo, Vigor, Korin, Natural One e iFood já estampam o selo em suas embalagens. 

No setor financeiro, em breve o Nubank vai começar a compensar o plástico de seus cartões de crédito com certificados da Eureciclo.

Modelo de negócio

Para executar todo esse trabalho, a empresa costuma ficar, em média, com 20% do valor dos créditos comercializados.

No ano passado, a empresa certificou mais de 100 mil toneladas de vidro, alumínio, plástico e papel, emitindo R$ 7 milhões em créditos, num processo auditado pela Ernst & Young. 

Neste ano, deve certificar pelo menos 150 mil toneladas, mas com chance de dobrar o volume do ano passado e atingir um faturamento de quase R$ 3 milhões.

A empresa havia chegado ao ‘breakeven’ em 2019. “Mas aceleramos o crescimento este ano, começamos a gastar mais e voltamos ao vermelho”, diz Pinto. Um dos investimentos foi em equipe, que neste ano foi a 60 pessoas.

Com um mercado inteiro a ser desbravado, a empresa fechou, em plena pandemia, uma captação série A com um grande fundo de venture capital. 

A rodada não foi acompanhada pela gestora de impacto Positive Ventures, que deu o primeiro cheque para a Eureciclo em 2017, no valor de R$ 500 mil, e segue como a maior investidora da startup. Positive e Lanx Capital, que também já era investidora, haviam feito uma rodada-ponte de R$ 3,3 milhões antes da série A.

Cachorro sem dono

Há poucos setores em que fazer a logística reversa tem sentido econômico para as empresas.

O caso clássico que dá certo é o daqueles que usam latas de alumínio como embalagem. “Com um preço de R$ 4 mil por tonelada, vender o alumínio paga todos os custos da logística”, diz Pinto. No outro extremo estão as marcas que usam embalagens de vidro, cuja tonelada ronda a casa de R$ 180. “O vidro viaja pouco.”

Assim como na Europa, no começo dos anos 90, a dinâmica no Brasil só começou a mudar com a lei que criou a Política Nacional dos Resíduos Sólidos, em 2010.

A lógica da lei é que a embalagem é uma externalidade criada pela empresa e, se ela colocou o lixo no ambiente, tem que ser responsável por retirá-lo. A meta inicial é de retirar 22% do lixo produzido e esse percentual subirá até 45% em 2031.

Mas a lei nasceu defeituosa, ao definir que a responsabilidade deveria ser compartilhada entre fabricantes e distribuidores. “É a velha história, cachorro que tem muito donos passa fome”, diz Pinto.

A regra só começou a pegar quando os Ministérios Públicos Estaduais passaram a acionar empresas judicialmente para cobrar o seu cumprimento, por volta de 2017.

São Paulo saiu na frente quando, provocada pelo MP, a Cetesb condicionou a concessão e renovação de licenças ambientais para fábricas à comprovação de cumprimento da meta de logística reversa. E definiu que a responsabilidade é do fabricante.

O mercado se abriu para a Eureciclo.

‘Quem dá mais?’

A federação da indústria paulista, a Fiesp, logo percebeu o tamanho do problema dos seus associados e se articulou para criar uma solução. Se aproximou da Eureciclo e passou a organizar leilões de crédito de reciclagem para os seus associados.

Os certames acontecem a cada dois meses, na sua sede, na avenida Paulista. As sessões são animadas, com os lotes de créditos de plástico ou papel sendo disputados pelos interessados. É dali que sai boa parte do volume transacionado pela startup atualmente.

A emissão dos certificados não é exclusividade sua. Inspirada em seu modelo, a Fiesp fixou os parâmetros para certificadoras e alguns concorrentes começam a surgir. Ao mesmo tempo, cada vez mais Estados têm criado suas regras e apertado a fiscalização, ampliando o mercado potencial para todos.

Conforme o custo da logística reversa é formado de forma transparente, as empresas têm sido levadas a repensar suas práticas.

“Já tem muito CFO hoje que olha o preço do certificado e consegue saber exatamente quanto custa retirar determinada embalagem do ambiente e vai pressionar a área responsável por mudanças”, diz Fábio Kestenbaum, que preside o comitê de investimentos da Positive.

“A gente acredita que o resíduo é um erro de design. Estamos ajudando a causar a transformação das embalagens pelo bolso”, completa Pinto.

O calcanhar de Aquiles

Hoje a rede de reciclagem conectada à Eureciclo tem mais de 6 mil CNPJs, entre cooperativas de catadores, aparistas e recicladores finais. Dentro desse contexto, são milhares de catadores de lixo, que vivem na informalidade e em condições precárias de trabalho.

Se a entrada da Eureciclo ajudou a remunerá-los melhor, os problemas estão longe de ser resolvidos.

“Como investidores de impacto, nosso grande desafio é preservar a missão. Ninguém quer perpetuar o modelo atual de cooperativas, que muitas vezes não oferece segurança econômica ou boas condições de trabalho para os cooperados”, diz Kestenbaum.

Tanto ele quanto Thiago Pinto dizem enxergar na mecanização do processo de reciclagem a solução para esse dilema de crescer o negócio à custa do subemprego.

“Hoje estima-se que existam 1 milhão de catadores no país. Para cumprir a meta de 22% de reciclagem, seria preciso chegar a 7 milhões de catadores. É uma irresponsabilidade pensar em colocar isso literalmente nas costas dos catadores”, diz Pinto. 

A saída é mecanizar o processo, criando unidades de reciclagem, e empregar as pessoas nas fábricas. “Mas a gente discute como ir além, dar suporte e oferecer letramento financeiro aos trabalhadores”, diz Kestenbaum.

Barreira ao crescimento

A mecanização, na verdade, resolve dois problemas para a Eureciclo. Além de corrigir a distorção social que está na base do seu modelo, pode impedir que a empresa encontre uma barreira ao crescimento. 

Conforme cresça a demanda por créditos de reciclagem, é preciso que a oferta de certificados acompanhe o ritmo, sob risco de a empresa perder a relevância.

Hoje, Thiago Pinto calcula que há espaço para a empresa emitir duas a três vezes o volume de créditos atual em São Paulo, mas o futuro vai depender de investimento na ampliação da capacidade de reciclagem. “Esse é o nosso gargalo”, diz.

Há apenas cinco ‘materials recycling facilities’, ou ‘murfs’, no Brasil – quatro em São Paulo e uma em Pernambuco. Essas máquinas rasgam os sacos de lixo e, ao longo de uma esteira, conseguem separar os resíduos orgânicos dos secos e segregar os diversos materiais. Cada máquina custa em torno de R$ 50 milhões e executa o trabalho de 300 cooperativas.  

Aumentar a capacidade de reciclagem e remover o obstáculo ao seu avanço futuro, entretanto, não está nas mãos da Eureciclo.

Como certificadora, a empresa não pode atuar na reciclagem propriamente, pois haveria conflito de agências. A saída tem sido atuar para induzir o processo, aproximando investidores potenciais dos aterros e outros atores interessados nessa etapa do processo. 

“Nós somos o software e é preciso uma onda de investimentos em hardware”, diz Pinto. “Não podemos investir num operador, mas podemos conectar pontas.”