Na esquina das ruas Martins Fontes e Álvaro de Carvalho, no centro de São Paulo, tapumes ecológicos cercam as novas obras do Virginia, edifício modernista de 1951 encomendado ao arquiteto José Augusto Bellucci pela família Matarazzo.
O edifício é o primeiro projeto da paulistana SomaUma como incorporadora. A empresa, formada em 2019 pelos arquitetos Marcelo Falcão, Pedro Ichimaru e Vitor Penha e pelo engenheiro Nilton Vargas, trabalha exclusivamente com o retrofit, técnica que investe no restauro e modernização de prédios antigos.
A proposta da SomaUma é mapear e requalificar imóveis hoje vazios, abandonados ou subutilizados para revitalizar a região central da capital paulista. E recuperá-los com impacto socioambiental positivo.
Durante mais de duas décadas os 47 apartamentos originais do Virginia (na foto acima), todos entre 161 m² e 182 m², com pé direito alto, varandas e janelões, serviram de renda para Virginia Matarazzo Ippolito.
No final dos anos 1970, o endereço tornou-se comercial. Com a decadência da região, no entanto, ele foi sendo abandonado aos poucos, até fechar as portas, definitivamente, em 2019.
Após o retrofit, o Virginia passará a ter 121 unidades de 26 m² a 182 m². Com entrega prevista para o segundo semestre de 2025, ganhará também lojas no térreo, academia, lavanderia coletiva e bicicletário, além de restaurante e um bosque na cobertura – este último, segundo a incorporadora, com objetivo de reduzir os efeitos da ilha de calor urbana.
As negociações para a compra do edifício começaram em 2019. “Mas ele tinha um imbróglio judicial que se estendeu por cerca de dois anos, tempo que tivemos para afinar o projeto e buscar investidores”, diz Marcelo Falcão, um dos sócios.
A incorporadora não revela o valor total pago pelo imóvel, mas Falcão diz que a empresa não paga mais do que R$ 2 mil por metro quadrado de área privativa de projeto final. O Virginia tem 10 mil metros quadrados totais.
O retrofit tem sido uma técnica bastante utilizada em grandes centros urbanos, especialmente em países europeus, para readequar edifícios históricos à vida moderna. Além de recuperá-los mantendo suas características arquitetônicas originais, as reformas transformam as estruturas seguindo normas atuais da construção civil, adequando às demandas dos consumidores com uso de novas tecnologias e materiais que diminuam os impactos da obra.
Segundo Falcão, no entanto, por aqui ainda é um enorme desafio vender a investidores a ideia do retrofit, especialmente em imóveis na região central da cidade. Os grandes incorporadores não se interessam pela técnica por conta da falta de escala e dos riscos desse tipo de obra.
“O capital é fundamental para nós, pequenos e médios empreendedores deste nicho. Mas, se não procurarmos fundos especializados em ativos distressed (ativos de empresas com dificuldades financeiras e, portanto, valor depreciado), certamente não vão nem querer conhecer o nosso projeto”, diz o arquiteto.
No Virginia, R$ 23 milhões de investimento vieram da construtora e incorporadora Carmo Couri, com uma expectativa de retorno sobre o capital investido de duas vezes.
O custo total do projeto deve ficar em torno de R$ 65 milhões – R$ 39 milhões destinados às obras de renovação.
Além da entrada da Carmo Couri, foram aplicados recursos próprios dos sócios e parte do capital proveniente da venda de apartamentos. A obra também foi financiada pelo Itaú.
Lançadas em 22 de fevereiro passado, as vendas ultrapassaram as expectativas da SomaUma e da Refúgios Urbanos, empresa responsável pela comercialização. A meta era vender 30% dos imóveis no primeiro mês. Na semana do lançamento, 47 unidades foram vendidas e, no mês seguinte, outras 25 – totalizando cerca de 60% dos apartamentos.
“Os mais procurados foram os estúdios”, diz Octavio Pontedura, sócio da Refúgios Urbanos. Especializada na revenda de imóveis descolados, é a primeira vez que a imobiliária assume um lançamento.
Segundo Pontedura, o perfil dos novos moradores do Virginia é variado. “Alguns buscam o imóvel como investimento, para locação de curto e longo prazo, outros para morar mais perto do trabalho e da nova agitação noturna do centro. Mas é raríssima a compra para a revenda depois da entrega.”
Falcão enxerga em comum entre eles a busca por um espaço que alie estética, praticidade e propósito. “A história e o charme do Virginia contam muito. Poder viver em um local que, de forma sustentável, foi reaproveitado e modernizado sem perder suas características originais é um grande diferencial”, diz ele.
“Os consumidores hoje se preocupam mais com o impacto daquilo que comem e vestem. Nossa provocação, como incorporadora, é que se preocupem também com o morar.”
Números competitivos e menos impacto
O metro quadrado dos apartamentos do Virginia está sendo comercializado, em média, por R$ 12.500 – valor próximo ao de novas unidades na região, no greenfield (quando o empreendimento começa do zero). O VGV (ou valor geral de vendas = o número de unidades x o valor médio das unidades) do projeto é de R$ 110 milhões.
Com números considerados competitivos, Falcão aponta algumas vantagens do retrofit da SomaUma sobre o mercado tradicional.
Uma delas é o prazo mais curto de obras, uma vez que a estrutura já existe. “Se a documentação estiver em ordem, entregamos o imóvel pronto em 12 a 18 meses, enquanto no greenfield a média é de 24 a 30 meses.”
Outra vantagem apontada são os valores que suportam o retrofit: sustentabilidade, regeneração urbana, resgate histórico e economia circular.
A SomaUma trabalha, por exemplo, com fornecedores que têm como política utilizar resíduos da indústria na fabricação de seus produtos, entre eles madeira plástica, borrachas sintéticas e tapumes ecológicos. A meta é buscar cada vez mais eficiência nestas parcerias e ampliar a rede a fim de diminuir custos e tempo de obra, e traçar um modelo escalável de retrofit.
“A escolha dos materiais está, sempre que possível, alinhada à LBC Red List, mesmo que eles custem um pouco mais”, diz o engenheiro Nilton Vargas, sócio da incorporadora.
A LBC Red List é elaborada pelo International Living Future Institute e documenta os piores materiais e produtos químicos que, se usados na construção, representam sérios riscos à saúde humana e ao meio ambiente..
No Virginia, a tinta utilizada em todo o edifício, por exemplo, será à base de água, não de solvente. A malha de lã acústica entre as placas de drywall – material muito utilizado em retrofits para diminuir a carga total sobre a estrutura do prédio, que quase sempre precisa ser reforçada para suportar o aumento de unidades e pessoas por andar – também ganhou nova versão.
Tradicionalmente feita com pó de rocha ou de fibra de vidro, materiais tóxicos para os trabalhadores, no Virginia ela será de garrafa pet – devem ser utilizadas, no total, 70 mil garrafas de 1 litro.
“É um produto final mais caro, mas, além de evitar problemas dermatológicos e pulmonares nos nossos funcionários, colabora com o meio ambiente”, diz Vargas.
O engenheiro calcula que o gasto extra da SomaUma com materiais e processos sustentáveis representa cerca de 3% do total da obra. “É pouco, comparado com o valor disso para o planeta e para o próprio negócio.”
Entulho reaproveitado
Outro grande problema da construção civil é o entulho. O Brasil ainda não tem políticas definidas para o descarte adequado do resíduo da construção civil, e a Abrecon (Associação Brasileira para Reciclagem de Resíduos da Construção Civil e Demolição) calcula que, em 2022, 70% do entulho produzido foi descartado incorretamente.
No Virginia, todo o entulho saído do prédio até agora foi rastreado e destinado a empresas certificadas, para diferentes fins. Cerca de 93% de 1,2 tonelada de entulho retirado, o equivalente a 51 caminhões-caçamba, foram reaproveitados. “Eles já viraram, ou ainda vão virar, areia, blocos, contrapiso, bancadas de granilite e pisos de cerâmica.”
Para encurtar processos e diminuir custos e impactos com transporte, a SomaUma fechou a compra de uma máquina para moer o entulho na própria obra.
O Virginia não é a estreia da SomaUma em retrofits, é apenas o primeiro como incorporadora. A empresa já entregou dois edifícios comprados pela Jive Investments, gestora especializada em ativos de risco. A casa de investimentos começou a investir em retrofit em 2020 e mantém os imóveis para locação.
Um deles, o RBS 700, edifício de 3.800 metros quadrados e 60 unidades residenciais, também na região central de São Paulo, era originalmente um espaço comercial monousuário.
A SomaUma comparou – usando a Cecarbon, calculadora de consumo energético e emissões de carbono do Sinduscon-SP – o impacto da obra com o de uma construção equivalente que tivesse partido do zero. “O resultado foi uma redução de 68% na emissão de carbono”, diz Vargas.
Ele aponta, também, uma economia hídrica significativa. “A água é fundamentalmente utilizada na produção de concreto e argamassa. Portanto, muito consumida nas fases de fundação e estrutura, que no retrofit não são mais necessárias.”
Programa Requalifica Centro
A SomaUma conta com um grande aliado para seu modelo de negócio dar certo: a Prefeitura de São Paulo. Se os números fecham e são competitivos com o mercado greenfield, isso se deve muito ao programa Requalifica Centro (Lei 17.577/21).
O incentivo fiscal da Prefeitura tem como base as construções na região central anteriores a 1992. Ele oferece reduções no IPTU, desconto de 2% sobre a alíquota de ISS para os serviços relativos à obra e isenção de ITBI do imóvel e, por cinco anos, de taxas municipais para instalação e funcionamento.
O programa também não considera computáveis as áreas destinadas à instalação de usos não-residenciais nos pavimentos térreo e cobertura dos edifícios – benefício explorado no projeto do Virginia.
O Requalifica Centro impulsionou, no ano passado, apenas entre março e outubro de 2023, a aprovação de 11 projetos de retrofit pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL), no centro. São 1.181 novas unidades residenciais.
Urbanistas críticos do modelo apontam que é necessário, sim, adensar o centro e criar novas oportunidades de habitação. Mas alegam que a maioria dos lançamentos em retrofit é voltada para um público de alta renda e pessoas que moram sozinhas.
O valor final dos apartamentos é de fato mais alto. “Mas já há prédios retrofitados fazendo locação social de algumas unidades, o que está nos nossos planos para o Virginia”, diz Falcão.
O próximo projeto da SomaUma, o retrofit do Edifício Misericórdia, no Largo da Misericórdia, lançado no mês passado, terá unidades vendidas a partir de R$ 7,5 mil por metro quadrado. Elas serão elegíveis ao programa Minha Casa Minha Vida e classificam-se como HMP (Habitação de Mercado Popular, voltada para famílias com renda entre 6 e 10 salários mínimos).
“Meu sonho é que as minhas filhas, ainda pequenas, queiram morar na Praça da Sé quando crescerem”, diz Falcão. “Estamos trabalhando para isso.”