Em meio a forte pressão de investidores, a JBS lançou hoje um plano para rastrear todos os seus fornecedores de gado na Amazônia até 2025, incluindo os indiretos, que criam bezerros e bois magros — o ponto cego da indústria e onde se concentra a maior parte do desmatamento associado à pecuária.
O plano tem como alicerce uma postura de parceria com os produtores, em contraposição à estratégia de apenas excluí-los da cadeia de fornecimento, e busca atrair outros atores da cadeia, como varejistas e bancos, para atacar o problema.
Mas tem o desafio central de quebrar a lógica de porteiras fechadas que impera na indústria e convencer os pecuaristas a compartilhar dados que hoje são considerados sensíveis e estratégicos para o seu modelo de negócios.
O cerne do programa é a criação de uma ‘Plataforma Verde’, baseada na divulgação voluntária por parte dos fornecedores diretos, sobre os quais a empresa tem mais visibilidade, das Guias de Transporte Animal (GTA).
As GTAs são documentos que servem para controle sanitário e são emitidos toda a vez que um animal é transportado entre fazendas ou para o abatedouro. Eles, no entanto, incluem dados sensíveis que dão visibilidade do estoque da propriedade e são vistos por boa parte dos fornecedores como um segredo comercial.
A ideia é engajar os fornecedores diretos para que eles abram essa informação, mostrando a origem dos bois que vieram para engorda de outras fazendas, e cruzá-la com dados de georreferenciamento que já constam no sistema de monitoramento da JBS, rastreando o caminho do gado.
Para garantir a confidencialidade e uso sigiloso dos dados, esse sistema será integrado numa plataforma de blockchain.
“No fim das contas, a gente vai acabar construindo uma espécie de Cadastro Positivo dos fornecedores de gado da pecuária brasileira”, disse o diretor de sustentabilidade da JBS, Márcio Nappo. “Isso vai ser bastante interessante para irmos em direção à sustentabilidade de todo o setor.”
A meta é ir engajando paulatinamente os fornecedores diretos, começando pelo Mato Grosso numa primeira fase. Em 2025, os fornecedores que não estiverem integrados à plataforma, batizada de ‘Plataforma Verde JBS’, não poderão mais fornecer para a companhia.
A ideia é que, quando o sistema estiver implementado, ele seja aberto para toda a cadeia de valor do setor, incluindo concorrentes.
Além da plataforma de rastreamento, a JBS anunciou a criação de um fundo de, inicialmente, R$ 250 milhões, a serem aportados em cinco anos, para iniciativas ligadas ao desenvolvimento sustentável da Amazônia.
A iniciativa contará com a participação de um conselho consultivo, que inclui nomes de especialistas de peso em Amazônia, como o ambientalista Carlos Nobre, um dos mais respeitados estudiosos de mudanças climáticas do país, além de representantes do varejo e do agronegócio, como Ronaldo Iabrudi, presidente do conselho de administração do Grupo Pão de Açúcar, e Noel Prioux, CEO do Carrefour.
A JBS convocou outras empresas, como bancos e varejistas, a contribuírem com o fundo, que pode chegar a até R$ 1 bilhão em 2030. A companhia vai dobrar todas as doações feitas por parceiros até chegar ao limite de uma contribuição própria de R$ 500 milhões. Ou seja, na capacidade total do fundo, metade pode vir do frigorífico e metade de outras companhias.
O compromisso anunciado hoje vem uma década depois de os principais frigoríficos do país terem firmado um acordo com o Ministério Público Federal (TAC) para garantir que não haveria desmatamento na cadeia. De lá para cá, eles melhoraram o controle sobre os fornecedores diretos: a JBS diz monitorar hoje 100% das fazendas das quais compra o boi gordo.
A data de corte para aceitar fornecedores indiretos na sua política de compra responsável será a mesma: aqueles que não tiverem desmatado depois de 2009.
O boi na linha
Mais que tecnológico, o desafio de trazer rastreabilidade à cadeia é de convencimento dos fornecedores e conseguir acesso aos dados do GTA é o principal obstáculo da JBS ao longo do processo.
Pecuaristas e membros do governo temem que, se a GTA for demandada para controle também ambiental, os criadores que estão desenquadrados da política de fornecimento podem deixar de emitir as guias, abrindo uma brecha no controle sanitário.
Outra queixa comum dos pecuaristas é que a informação dá muito poder de negociação para os frigoríficos na política de compras de gado, que responde por mais de 70% dos custos, na medida em que dá visibilidade sobre o estoque.
Aqui a JBS diz ter uma bala de prata. Com a tecnologia de blockchain, explica Nappo, será possível extrair do GTA apenas a informação referente à fazenda de origem do bezerro ou do boi, sem outros dados sensíveis.
“O processo será certificado e auditado. Muita gente pergunta porque não fizemos isso antes. A tecnologia é uma das razões, e hoje ela está disponível”, afirma o diretor de sustentabilidade do grupo.
Desde 2015, há um forte movimento de advocacy do setor com o governo para que o GTA se converta de um instrumento sanitário em um documento ambiental, com informações de conformidade, como se a fazenda em questão está na lista de embargo do Ibama.
“Ainda vemos essa o GTA Verde como um passo importante para o setor, e estamos em conversa com o governo, com uma grande interlocução com o Mapa. Mas o tempo dos negócios não é o tempo da política e é por isso que decidimos nos adiantar”, diz Nappo.
Trabalhando em conjunto
A estratégia central para engajar os produtores será trabalhar em conjunto com eles, dando assessoria jurídica, técnica e até mesmo comercial para regularizar os produtores em desconformidade que estiveram dispostos a mudar.
“Tão importante quanto cada vez mais ter certeza, através da rastreabilidade, de que a gente tem fornecedores que têm um controle ambiental e sobre desmatamento, é dar esse apoio para mediar passivos e conseguir trazer cada vez mais a cadeia como um todo para dentro da regularidade”, disse Wesley Batista Filho. “Os dois passos são importantes, um tanto quanto o outro.”
Para além dos produtores que trabalham na ilegalidade, na Amazônia boa parte dos criadores de bezerros são pequenos e médios produtores que acabam recorrendo à pecuária de baixo rendimento e ao desmatamento por falta de conhecimento técnico e crédito para recorrer a uma produção mais intensiva ou até a culturas agrícolas sustentáveis.
E, nesse sentido, uma concertação com diversos elos da cadeia é relevante para trazer uma transformação na rastreabilidade.
“Além dos frigoríficos, varejistas, fornecedores de insumos, e bancos poderiam dar incentivo à rastreabilidade, com incentivos para quem abre os dados de GTA, por exemplo”, diz Mathias Almeida, CEO da NatCap, consultoria focada no desenvolvimento sustentável nas cadeias do agronegócio. “Imagina: os bancos podem dar crédito mais barato a quem tem essa transparência, por exemplo.”
Setor em movimento
O anúncio da JBS vem dois meses depois de a concorrente Marfrig ter se comprometido com o desmatamento zero na cadeia de fornecedores na Amazônia no mesmo prazo, de 2025.
Na essência, os planos partem do mesmo princípio, de parceria com os produtores e de colocar os frigoríficos à frente de um diálogo que precisa envolver outros entes, inclusive o governo.
Mas há algumas diferenças essenciais entre os planos das duas concorrentes.
A Marfrig divulgou um compromisso formal de desmatamento zero no bioma até 2025, do bezerro ao abate, e divulgou um plano mais amplo, a ser construído, sem definir uma plataforma ou ferramenta específica. Segundo fontes próximas à companhia, um dos projetos em andamento é uma tecnologia de blockchain para destrinchar dados de GTAs, semelhante ao que a JBS quer fazer.
Já a JBS focou no meio para atingir esse fim: a meta declarada é colocar todos os fornecedores diretos na Plataforma Verde até 2025. Mas não há compromisso formal com zero desmatamento.
“Pode parecer um detalhe, mas é uma coisa importante. Se eles conseguirem desmatamento zero na cadeia até 2025 é relevante, mas se for só o monitoramento e jogarem esse compromisso mais para a frente não diz tanta coisa”, diz o diretor de uma organização ambiental engajada com o assunto.
A empresa dos Molina também incluiu o desmatamento zero no Cerrado como um compromisso a ser atingido num segundo momento, até 2030. O rastreamento completo no bioma, também ameaçado, não está, por ora, nos compromissos da JBS.
Fundo Amazônia
Por ora, a concertação em torno da questão do desmatamento provocado pela pecuária ficou mais evidente na criação do Fundo JBS Pela Amazônia, voltado para apoiar iniciativas de desenvolvimento socioeconômico da região e a conservação do bioma.
“Para atacar o problema do desmatamento, é crucial aumentar o uso sustentável da terra, gerando emprego e renda para as comunidades locais, além de aprimorar a pesquisa e o desenvolvimento com conservação da floresta”, disse Joanita Karoleski, ex-CEO da Seara, que está no comando do fundo.
A governança do fundo será formada por um conselho consultivo com competências plurais. Fazem parte: Alessandro Carlucci, ex-CEO da Natura; André Guimarães, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam); Caio Magri, Instituto Ethos; Carlos Nobre, um dos mais respeitados especialistas em mudanças climáticas do país; o ambientalista Fabio Feldmann; Marcello Brito, da Associação Brasileira do Agronegócio(Abag), Marina Grossi, do Centro Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS); Noel Prioux, CEO do Carrefour; Raul Padilla, CEO da Bunge; Ronaldo Iabrudi, presidente do conselho do Grupo Pão de Açúcar (GPA) e Teresa Vendramini, da Sociedade Rural Brasileira (SRB).
“A solução para a Amazônia não é uma responsabilidade de um ou outro, mas da sociedade. Estamos tomando uma posição ativa de ser um catalisador de esforços que possam fazer a grande diferença tanto na preservação quanto na conservação e no desenvolvimento da comunidades que lá vivem”, disse o CEO do Grupo JBS, Gilberto Tomazoni.
“Com transparência e execução, seremos capazes de atrair fundos e fundações não só no Brasil como no exterior, assim como clientes nossos. O fundo é aberto para todos.”
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