ESG vem de berço: o poder da literatura negra

Oito livros infantis com histórias sensíveis, de aventuras e cheias de elementos culturais que muitas vezes acabam relegados numa sociedade marcada pelo racismo estrutural

ESG vem de berço: o poder da literatura negra
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A literatura infantil é tão intensa e envolvente — como uma criança que quer saber tudo e descobrir o mundo — que não deu tempo de celebrar o primeiro ano desta coluna, iniciada em outubro de 2021. 

Desta vez, volto ao assunto de novembro do ano passado, quando indiquei nove livros sobre o protagonismo negro

Mas, em vez de trazer sugestões que tratam de assuntos como preconceito, estereótipos e racismo, sugiro obras de autores ou ilustradores negros, de editoras especializadas em literatura negra e de lindas e frutíferas parceiras entre negros e brancos. 

Histórias sensíveis, de aventuras e cheias de elementos culturais que muitas vezes acabam relegados numa sociedade marcada pelo racismo estrutural. Histórias de e para crianças que querem se ver representadas pelos personagens principais, suas famílias, seus hábitos e costumes. 

O objetivo é valorizar o trabalho desses profissionais do livro, mostrando quanto talento, muitas vezes, fica escondido por trás de um corpo social em que o racismo estrutural é dificilmente quebrado. Só eles sabem quantos entraves têm para publicar ou quantas portas são fechadas apenas por causa da cor da pele. 

Se Eu Fosse Uma Casa

Carol Fernandes (Tuya Edições, 2020)

A Carol é mineira, pedagoga e já passou muito tempo em sala de aula rodeada de crianças. Ilustra e escreve — eu diria que compõe. Seu livro cria uma relação íntima entre uma casa e um corpo, com um texto poético, forte, real, e ilustrações em preto, cinza e azul escuro, feitas com aquarela e nanquim. Tem técnica e tem lirismo. Tem tambor e violino, tem pandeiro e harpa. Ela explica, em vídeo do Festival Literário Internacional da prefeitura de Belo Horizonte, que, na sua imaginação, ela é uma casa infiltrada, mofada e desgastada, em resumo, vivida, o que ela procura transmitir com o método da tinta aguada. O livro só foi publicado porque captou recursos por um sistema de financiamento coletivo em parceria com a editora. Recebeu o selo “Seleção” Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio 2021. 

Mesma Nova História

Everson Bertucci, Mafuane Oliveira e João Paulo Vaz (Editora Peirópolis, 2021)

Mafuane Oliveira é arte educadora, pesquisadora e contadora de histórias, graduada em pedagogia. Seu foco é a difusão e a transcriação de narrativas tradicionais africanas e luso-afro-ameríndias. Em colaboração com os demais autores, criou a história da delicada conexão entre uma avó que perde a memória e um neto vidrado em jogos eletrônicos. O humor está presente na medida e nos lugares certos, assim como a maneira poética de expor uma doença triste e suas consequências. O livro foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria Infantil. 

Vermelho

Maria Tereza e Andrés Sandoval (Editora 34, 2009)

Maria Tereza Moreira de Jesus era poeta, compositora e atriz. Também já tinha sido garçonete, vendedora, recepcionista e segurança. Nasceu e viveu na Vila Nova Cachoeirinha, zona Norte de São Paulo. Trabalhou no teatro com Zé Celso Martinez Corrêa e musicou e encenou poemas de Solano Trindade, Stela do Patrocínio e Hilda Hilst. Faleceu com quase 36 anos, de uma doença rara e de difícil tratamento, conhecida, ironicamente, como síndrome POEMS. Publicou dois livros de poesia e Vermelho, autobiográfico. Nele, uma garota que adora fazer bolos de terra no quintal de casa pede à mãe um bolo todo vermelho para o seu aniversário de nove anos. No dia da comemoração, o bolo que está sobre a mesa é inteirinho branco. Mas essa mãe, muito observadora, tinha uma surpresa para ela.

A Bela Adormecida do Samba 

Sonia Rosa e Luciana Grether (Mazza Edições, 2021)

A última versão de que se tem notícia deste conto de fadas é a da professora, educadora e escritora Sonia Rosa, que trabalha na Secretaria da Educação do Estado do Rio de Janeiro. Acompanhada pelo lindo trabalho artístico de Luciana Grether, ela criou uma “princesa” filha de um mestre-sala e de uma porta-bandeira, reis do samba. A narrativa faz referência a diversos elementos da cultura brasileira e africana na música, na dança, nos instrumentos e até nas árvores originárias, como a sagrada Baobá. Elementos religiosos africanos também estão presentes para entender e decifrar o encantamento ao qual a jovem é submetida. Uma versão alegre e colorida para todos os fãs da famosa princesa.

Foi Assim Que Eu e a Escuridão Ficamos Amigas

Emicida e Aldo Fabrini (Companhia das Letrinhas, 2020)

A personalização da escuridão, um duelo inteligente entre o medo e a coragem, e tudo o mais que mora dentro de nós, guiam essa história bem humorada e cheia de rimas, escrita por Leandro Roque de Oliveira, o Emicida – cantor, compositor, rapper e apresentador. Nascido no Tremembé, zona Norte de São Paulo, tornou-se um grande porta-voz da valorização da cultura negra. O texto da história também virou música e os fãs do artista comemoram: “Emicida para baixinhos”! Além deste, publicou também “Amoras” para o público infantil.

O pulo do coelho

Lázaro Ramos e Lais Dias (Editora Carochinha, 2021)

Desde 2010, Lázaro Ramos, ator, produtor, diretor e roteirista, vem escrevendo para crianças. O Pulo do Coelho levou quatro anos para ficar pronto e foi adaptado depois da pandemia. Começa com um tema-chave vivido no mundo inteiro: o confinamento em contraposição à liberdade. No livro, o menino Gusmão sonha que é um coelho, que vive preso na cartola de um mágico de circo, entrando e saindo, no decorrer dos espetáculos. A história também fala sobre desejos e frustrações, autonomia e persistência. O sonho verdadeiro do coelho, ou do menino, era ser o próprio mágico. Sem qualquer menção a questões racistas, há um toque de afrofuturismo. Lázaro conta, em entrevista ao site Mundo Negro, que numa visita a uma escola pública em Salvador, ao perguntar para as crianças sobre sonhos, percebeu constrangimento nos olhares. Segundo ele, as crianças não sabiam nem que tinham o direito de sonhar e de desejar alguma coisa para o futuro. A obra está disponível com duas opções de capa: o menino ou o coelho.

Ombela – a origem das chuvas

Ondjaki e Raquel Caiano (Pallas Mini, 2014)

Ondjaki nasceu em Luanda, Angola, como Ndalu de Almeida. Tem doutorado em Estudos Africanos e começou a publicar em 2000. Já recebeu os prêmios de literatura Jabuti e José Saramago, e foi considerado, em 2012, pelo jornal inglês The Guardian, um dos cinco melhores autores africanos. Em Ombela, ele conta o mito da origem das chuvas. Com muita poesia e ilustrações impactantes, os autores apresentam às crianças uma conversa filosófica entre deuses de um grupo étnico originário das montanhas de Angola, que falam umbundu. Um terço da população angolana pertence a esse grupo. E Ombela, em umbundu, significa chuva.

Dumazi e o grande leão amarelo

Valanga Khoza e Matt Ottley (Brinque-book, 2021)

Valanga Khoza nasceu na África do Sul e há anos está na Austrália divulgando sua cultura como autor e músico. Matt Ottley é de Papua Nova Guiné. A capa do livro tem detalhes em verniz dourado, fazendo referências à realeza do leão, e as ilustrações são impressionantes, seja pelos detalhes, seja pelo ângulo em que os personagens são apresentados. A história traz animais e paisagens africanas, além de apresentar elementos da cultura zulu, o maior grupo étnico da África. A história é sobre ética. Uma promessa é quebrada e a garotinha Dumazi, a vítima, decide ouvir a opinião de outros animais sobre a questão. Os argumentos giram em torno da sustentabilidade e da preservação da flora e da fauna africanas. Até que o ego e a vaidade entram em jogo e a história tem uma reviravolta. A última página do livro tem um texto curto com informações geográficas, sociais e culturais da região em que se passa a história.