Da filantropia ao venture capital: Como o Fundo Vale está investindo em ‘carbono de impacto’

Fundo da mineradora já investiu R$ 100 milhões e quer comprovar que dá para acelerar e dar escala a negócios baseados em sistemas agroflorestais e silvipastoris

Da filantropia ao venture capital: Como o Fundo Vale está investindo em ‘carbono de impacto’
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Quando a Vale estava decidindo como executar um compromisso de recuperar 100 mil hectares de florestas brasileiras até 2030, Patrícia Daros decidiu ser ousada. Ou, nas palavras dela, “abusada”. “Dissemos: ‘vocês podem recuperar essa área como quiserem. Mas temos um jeito muito mais interessante’.”

Eis a proposta de Daros, a diretora do Fundo Vale, fundo filantrópico da mineradora, ao comando da empresa: em vez de simplesmente replantar árvores, por que não buscar startups que unam a preocupação ambiental e social com modelos de negócios ambiciosos e focados em crescimento?

A gestora convenceu a direção da empresa a deixar sob responsabilidade do fundo a recuperação das florestas – uma área que equivale a cerca de 80% da área da cidade do Rio de Janeiro. (Outros 400 mil hectares serão conservados, completando a meta de 500 mil hectares de florestas recuperadas e conservadas.)

O projeto será a prova de conceito da transformação pela qual passa o Fundo Vale, criado em 2009 pela mineradora para prover capital a fundo perdido para projetos ambientais na Amazônia Legal. 

Agora, em vez de simplesmente um instrumento de filantropia, o fundo quer atuar como uma espécie de capitalista de risco das florestas.

A chave é a sustentabilidade – dos negócios. “Durante muito tempo, a sensação era de enxugar gelo”, afirma Daros. “Aportávamos recursos para manter a floresta em pé, aí vinha a pecuária e desmatava tudo.”

A forma final do arranjo com as companhias que recebem recursos ainda não está totalmente definida, mas já se sabe que o modelo não é a compra de participação societária nas startups. O fundo gostaria, por exemplo, de receber o retorno em créditos de carbono. 

Eles são parte da estratégia de descarbonização da mineradora.

Os compromissos anunciados da empresa são redução de 33% de suas emissões de escopo 1 e 2 (diretas e de compra de energia) até 2030, além de 15% das de escopo 3  até 2035. A Vale afirma que 20% das suas reduções de escopo 3, que envolvem fornecedores e clientes, virão de offsets, ou seja, de compensações. 

Patrícia Daros convenceu a direção da empresa a buscar não simplesmente carbono, mas o que ela chama de “carbono de impacto”. Até dezembro, os investimentos nesse modelo de desenvolvimento sustentável terão atingido R$ 100 milhões, em cinco empresas diferentes.

O desafio, como diz a executiva, é comprovar que é possível identificar, acelerar e dar escala a negócios baseados em sistemas agroflorestais e silvipastoris. Em 2020, as iniciativas apoiadas recuperaram 1.000 hectares, e este ano a previsão é chegar a 5.000.

Quando se fala de empresas dessa natureza, não se espera um crescimento como o das startups digitais, é claro. São propriedades pequenas e médias, que exigem intervenção humana e um trabalho de formiguinha.

Com a ajuda da Palladium, uma consultoria especializada em projetos de impacto social que executa o programa, o fundo mapeou 60 companhias inicialmente.

Abacaxi exportação

A Bioenergia Orgânicos é uma das empresas que receberam recursos do Fundo Vale, com um aporte inicial R$ 3,6 milhões. Apesar de ser uma startup, vem sendo gestada há uma década e meia, diz Osvaldo Araújo, um dos sócios da Bioenergia.

A empresa trabalha desde 2011 com a Embrapa no desenvolvimento de cultivares e insumos orgânicos para a fruticultura na região de Lençóis, na Bahia. O plano da companhia é auxiliar pequenos produtores com tecnologia e meios de produção e, em troca, ter o direito de comprar e processar frutas como abacaxi, manga e maracujá.  

“O pequeno agricultor brasileiro não planta porque não tem para quem vender”, diz Araújo. “Queremos oferecer a tecnologia e a segurança de que a produção terá comprador.”

Araújo diz que deverá ter acordo com 80 pequenos produtores até o fim do ano. A inauguração da fábrica de processamento, que também fica em Lençóis, está prevista para 2023. O plano é vender polpas integrais para fabricantes de sucos, exportá-las para a Europa e também criar marcas próprias.

Num raio de 150 km ao redor da fábrica, há 52 mil pequenos produtores, segundo os registros dos vários municípios. “Queremos atingir 10% dessas famílias.”

 O investimento da Vale na Bioenergia Orgânicos será responsável por 150 hectares de área de plantio e é uma parte modesta dos R$ 70 milhões já colocados na empresa, a maior parte de capital dos dois sócios.

Mas o aporte vai ao encontro do modelo do Fundo Vale. Uma vez comprovada a viabilidade do sistema na Chapada Diamantina, diz Araújo, o modelo pode ser replicado em outras regiões do país.

O pós-pasto

Nem todas as companhias que receberam recursos da mineradora, porém, têm tantos anos de estrada – pelo contrário. A Belterra Agroflorestas, uma empresa de restauração de áreas degradadas, nasceu dentro do Fundo Vale.

Valmir Ortega, que já prestava consultorias para o fundo e hoje é presidente da Belterra, diz que a degradação não é meramente a derrubada da vegetação nativa. “Além da questão ambiental, a floresta que vira pasto não gera renda capaz de tirar as pessoas da pobreza”, afirma Ortega.

Um pasto degradado na Amazônia tem de meia a uma cabeça de gado por hectare, o que representa uma renda líquida de R$ 150 anuais. “Ou seja, além dos danos ao ambiente, é um problema social enorme.”

O objetivo da Belterra é convencer o pequeno proprietário de terras a replantar a floresta e trocar o gado por plantações. “Nossos sistemas de produção de cacau, açaí, cupuaçu e pupunha podem ser de cinco a dez vezes mais rentáveis que a pecuária”, diz Ortega.

A startup quer mitigar parte dos riscos, seja por meio de arrendamento (para propriedades maiores) ou parcerias e capacitação para pequenos produtores. A estimativa é que um hectare de cacau possa corresponder a um rendimento anual de R$ 6 mil a R$ 8 mil.

Em 2020, a empresa implantou seu sistema agroflorestal em 21 propriedades, totalizando 800 hectares, e o objetivo é chegar a 1,4 mil hectares até o fim deste ano. Os projetos estão concentrados em quatro estados:  Pará, Rondônia, Bahia e Minas Gerais.

O potencial existe. No sul da Bahia, a startup identificou mais de 100.000 hectares de florestas em que havia plantação de cacau e que viraram pasto. No sul do Pará, estado onde nasceu a Belterra, são 50 mil produtores e mais de 2 milhões de hectares de assentamentos rurais, grande parte dos quais vive de pecuária ou de agricultura de subsistência, diz Ortega.

A contabilidade do carbono

O produtor também será sócio da Belterra nos créditos de carbono gerados pelos projetos. “Podemos arrendar uma propriedade por dez anos, mas nos dez seguintes ele pode continuar sendo remunerado”, afirma Ortega.

A ideia é que a produção aliada ao restauro seja mais lucrativa para o produtor do que qualquer outra coisa que ele pense colocar no lugar. Ter um comprador para a produção também é parte essencial da equação de sustentabilidade. 

A Belterra está em conversas avançadas com uma grande empresa de commodities do setor agrícola na outra ponta da cadeia. E, mesmo com tão pouco tempo de vida, a companhia pode ser a primeira a atrair um investidor mais tradicional como sócio – outro dos objetivos declarados do Fundo Vale.

“O impacto vem em primeiro lugar, mas sabemos que o retorno financeiro é que vai garantir a sobrevivência dos negócios”, diz Gustavo Luz, gerente do fundo.

Testando a tese 

A incursão do fundo nesse novo modelo ainda é experimental. “Estamos na fase de entender os problemas e gerar e sistematizar o conhecimento. Por isso dizemos que se trata de uma tese.” O sucesso nos 100 mil hectares, diz, pode ajudar a destravar recursos que permitam recuperar milhões de outros.

Olhando para os números, é um imperativo. Só este ano, a Amazônia deve perder 2 milhões de hectares, ou 20 vezes mais do que o total que o Fundo Vale pretende recuperar até o fim da década.

Mesmo que o desmatamento acabasse amanhã, a necessidade de recuperação continuaria enorme. Uma das apostas é que esses modelos que combinam reflorestamento com atividade econômica possam reduzir de forma significativa o custo de recuperação das áreas degradadas.

Caso funcione, o sistema se retroalimenta. “Não temos fins lucrativos”, diz Gustavo Luz. “A ideia é sempre reaplicar eventuais retornos no próprio fundo.”

Parte dos recursos virá de outras fontes, num modelo conhecido como blended finance, que mistura capitais filantrópicos e tradicionais. “Podem ser investidores privados, governos, ajudas internacionais e assim por diante”, afirma Aldo Labaki, presidente da Palladium no Brasil.