Numa ação inédita no setor, a Marfrig lançou um amplo compromisso para rastrear a origem de todo o gado abatido, incluindo fornecedores diretos e indiretos, para garantir que toda sua cadeia de suprimento seja efetivamente livre de desmatamento.
A meta é entregar a rastreabilidade total na Amazônia até 2025 e no Cerrado até 2030, com investimento da ordem de R$ 500 milhões em sustentabilidade nos próximos dez anos — o dobro do que foi gasto na década anterior.
Mais do que traçar um mapa de ação, no entanto, o frigorífico chamou uma grande concertação, propondo-se a abrir pontes e liderar diálogos com governos, ONGs, sociedade civil e instituições financeiras de forma a criar incentivos econômicos e legais para manter a floresta em pé.
“Hoje um criador tem uma área de 100% de floresta e uma licença legal para desmatar 20%. Se ele resolver não desmatar, o que ele ganha? Nada”, diz Marcos Molina, presidente do conselho e maior acionista da Marfrig.
Hoje, os frigoríficos têm controle dos fornecedores diretos, que fazem a engorda do boi. Mas conhecem pouco a cadeia de cria dos bezerros e do boi magro, que vende para esses fornecedores, e portanto, não consegue validar a procedência integralmente.
O plano anunciado, traçado em parceria com a consultoria holandesa IDH, parte de uma mudança essencial de paradigma, da exclusão para a inclusão dos produtores, diz o diretor de sustentabilidade da Marfrig, Paulo Pianez.
Dos 16 mil fornecedores diretos mapeados hoje no bioma amazônico, a Marfrig tem cerca de 3500 fornecedores bloqueados — a maior parte porque abriu pastagens em áreas desmatadas após 2009, data de corte estabelecida pelos principais frigoríficos do Brasil para o desmatamento zero nos fornecedores diretos.
“Tem um ditado muito famoso no nosso setor: o boi não morre de velho no pasto. Se nós não estamos comprando esse boi porque ele não atende aos critérios de compra da Marfrig, ele está indo para algum outro lugar”, diz Pianez.
Segundo ele, isso cria dois problemas: além de não cumprir os critérios mínimos do ponto de vista socioambiental e prejudicar o meio ambiente, esse boi é vendido a um preço menor do que no mercado formal.
Agora, a ideia é trabalhar com esses produtores para que eles possam se regularizar e voltar à cadeia de fornecimento, de forma a gerar um incentivo positivo.
E o dinheiro?
Isso passa, essencialmente, por desenvolver mecanismos financeiros inovadores. Hoje produtores que adotam práticas como integração da pecuária com floresta, de baixo carbono, queixam-se que não conseguem financiamento porque os bancos só aceitam como garantia terra ou lavoura, e não a floresta em pé.
“Como fazer esse crédito chegar aos produtores, principalmente o pequeno que atua na fase da cria e não tem condições de acessar esses recursos?”, questiona Pianez, convidando os bancos a atuarem nessa ponta.
A Marfrig já vem mantendo conversas com o BID e o Rabobank, que têm linhas de financiamento de prazo mais longo, e vê com bons olhos o compromisso divulgado ontem por Bradesco, Itaú e Santander para criar mecanismos de desenvolvimento sustentável para a Amazônia. “Fiquei muito feliz de ter visto o posicionamento dos bancos ontem, isso facilita muito a criação desses mecanismos”, aponta Pianez.
Ele defende também uma postura diferente por parte dos investidores que vêm cobrando a redução do desmatamento. “Alguns deles dizem que vão desinvestir. E se fizessem o contrário e construíssem fundos para endereçar recursos para que possamos ter políticas mais inclusivas nas áreas de maior vulnerabilidade? Esses recursos podem ser coordenados pela própria indústria para chegar às áreas de maior vulnerabilidade, com verificação por partes terceiras”, propõe.
Além do acesso a financiamento, outro pilar de atuação da Marfrig junto aos produtores é o de assistência técnica, ampliando o acesso do produtor a mecanismos de melhora genética, gestão do pasto e nutrição do animal para aumentar a produtividade e não haver necessidade de derrubada de vegetação para ampliar a produção.
Em paralelo a esses esforços estruturantes, a Marfrig está criando um mapa de mitigação de risco para identificar as áreas de cria de bezerros a serem priorizadas. Primeiro, mapeou onde há áreas de cria na Amazônia e as está sobrepondo a mapas de presença de vegetação nativa e avanço de pastagem, o que mostra regiões de maior risco.
Esse mapa deve ficar pronto entre setembro e outubro. Também até o final de 2020, o sistema de geomonitoramento via satélite, hoje usado para a Amazônia, estará adaptado para monitorar o bioma Cerrado.
Em até dois anos, a Marfrig adaptará todos os seus sistemas para controle da cadeia e mitigação de riscos e, entre 2022 e 2025, pretende liderar o programa de reintegração de produtores bloqueados.
E o governo?
Nas últimas semanas, o controlador da Marfrig e presidente do conselho, Marcos Molina, vem encabeçando as conversas do setor pecuário com o vice-presidente Hamilton Mourão, que lidera o Conselho da Amazônia.
“Nas conversas iniciais com o governo, todos veem as iniciativas para manter a floresta em pé com bons olhos, o que faltava era essa liderança, para colocar todo mundo para sentar junto na mesma mesa”, disse Molina ao Reset. “No fim das contas todo mundo quer produção sustentável no agronegócio.”
A companhia está encampando uma demanda antiga de organizações do terceiro setor por mais transparência nos dados públicos referentes a origem. Hoje, toda vez que o bezerro ou o boi trocam de mãos, gera-se uma Guia de Transferência Animal, a GTA, que serve de controle sanitário. A proposta é que os dados possam ser abertos e auditados para que sirvam também de controle ambiental.
Outra demanda é conectar a GTA ao CAR, o Cadastro Ambiental Rural, o que facilitaria o rastreamento.
Daniel Azeredo, procurador da República que coordenou o projeto Carne Legal, afirma ainda que é preciso deixar o CAR mais robusto. Auto-declaratório, o documento tem que ser validado pelos Estados, e uma pequena minoria dos documentos entregues por produtores foi checado até agora.
Todo mundo na mesa
Num evento realizado ontem, representantes de ONGs, consultorias e do Ministério Público elogiaram a postura da Marfrig.
“É importante se propor a trazer e influenciar o setor como um todo, não só seus pares, mas também o governo, no sentido de que é muito importante ter mudanças estruturais que possam apoiar o que cada empresa vai fazer para eliminar o desmatamento das cadeias”, disse Maurício Voivodic, diretor-executivo do WWF.
Mas ele cobrou uma velocidade maior na concretização das metas, especialmente no que diz respeito à rastreabilidade no Cerrado.
“Essa meta do Cerrado pode ser antecipada e muito. Não tem razão nenhuma, literalmente nenhuma, para que os mecanismos de controle que foram implementados para a Amazônia não possam ser aplicados ao Cerrado”, disse Tasso Azeredo, coordenador do MapBiomas, que produz mapas de georreferenciamento.
Marcelo Furtado, ex-diretor do Greenpeace e que assumiu como membro do comitê de sustentabilidade da Marfrig há pouco mais de um mês, vê uma mudança importante no cenário.
Ele conheceu Molina em 2009, quando dirigia o Greenpeace e foi responsável pelo relatório “A Farra do Boi”, que mostrou a ligação entre a pecuária e desmatamento e virou a chave da indústria.
“Se você me perguntar a diferença, eu diria que em 2009 existiam vários lados: a Marfrig de um, a sociedade civil estava do outro, os produtores e o Ministério Público de outro. Hoje nós estamos num evento falando abertamente, com transparência, liberdade, pontos positivos, desafios, puxando datas e fazendo um reconhecimento de que existe a vontade conjunta de transformar. Isso é novo.”