No Brasil, vivemos como se o planeta não estivesse mais quente

Da seca no Amazonas ao apagão em São Paulo, a mudança climática já se manifesta ao vivo e em cores; país precisa de uma política nacional de adaptação

No Brasil, vivemos como se o planeta não estivesse mais quente
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O recente “Adaptation Gap Report” do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) traz à tona uma realidade inquietante: a crescente lacuna entre a necessidade urgente de adaptação à mudança do clima e as ações efetivamente implementadas.

Esse cenário global, em que 85% dos países possuem algum instrumento de adaptação climática, revela uma aplicação tímida dessas estratégias, especialmente em relação ao financiamento. 

No Brasil, a situação é alarmante. A falta de um instrumento nacional de adaptação climática vigoroso e estratégico é evidente, especialmente quando acontecem eventos extremos ao vivo e em cores.

Neste momento, o estado do Amazonas, as secas severas e as queimadas seguem sem uma resposta efetiva. Em São Paulo, uma tempestade deixou milhões sem energia elétrica durante dias. Mais de 30 municípios paranaenses – inclusive a minha cidade natal, União da Vitória, no sul do Estado – estão em estado de emergência por causa das chuvas.

A recente iniciativa do Ministério do Meio Ambiente de formar um grupo de trabalho para desenvolver planos setoriais é um passo. Será importante contar com indicadores nacionalmente definidos para gerar comprometimento político, facilitar investimentos e apoiar o desenvolvimento de ações locais.

Da teoria à prática

Temos a enorme vantagem de contar com um corpo técnico de altíssimo nível, que detém um histórico relevante de pesquisas na ciência de desastres e de adaptação. No entanto, faltam políticas públicas baseadas nesta mesma ciência.

O Centro de Monitoramento de Desastres (Cemaden) dá contribuição relevante nos alertas precoces, e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) tem grande papel na modelagem, mas faltam os demais elos da cadeia. 

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) nasceu sem qualquer cuidado com a gestão de riscos climáticos e a resiliência. O Plano de Transformação Ecológica, capitaneado pelo Ministério da Fazenda, teria um eixo de adaptação – mas não há indícios de avanço nesse front.

Também não existem programas estratégicos sendo costurados junto a outras políticas estruturantes, como infraestrutura, apesar de um recente anúncio de que o Ministério dos Transportes estaria olhando para rodovias.

Na seara da biodiversidade e da proteção dos ecossistemas, há oportunidades imensas – para as quais não se abriu espaço nacional e público ainda. No plano subnacional, o exemplo do Amazonas com o Ceclima, órgão extinto em 2015, destaca oportunidades perdidas para fortalecer a resiliência climática.

O El Niño está entre nós

O país enfrenta desafios únicos de adaptação climática – a seca provocada pelo El Niño e as mudanças climáticas no Amazonas ilustram esse quadro dramático.

As comunidades ribeirinhas estão enfrentando uma seca extrema, e Manaus, encoberta pela fumaça de florestas queimadas, respira um dos ares mais poluídos do mundo.

Este cenário mostra que o descuido com a natureza tem um preço alto, com as emissões globais causando danos locais e as práticas de queimadas locais contribuindo para o problema climático global.

A mudança do clima já é uma realidade, não mais um risco distante. Ela impacta humanos e também animais – e a agoniante perda de centenas de botos cor-de-rosa no Rio Negro mostra que a instabilidade climática da Terra será implacável com todos. 

É imperativo que o setor público e a sociedade cooperem para enfrentar estes desafios climáticos. Especificamente no Amazonas, é crucial retomar e fortalecer a política climática estadual, incluindo a recriação de órgãos como o Ceclima.

Além disso, é necessário atuar de forma mais efetiva na prevenção de queimadas e desmatamentos ilegais e promover a adaptação como uma agenda prioritária, apoiando comunidades vulneráveis e fortalecendo a resiliência local.

A questão da adaptação no Brasil também é marcada por uma omissão significativa no cenário internacional. De acordo com o Acordo de Paris, as comunicações de adaptação representam um instrumento importante para que os países relatem voluntariamente suas necessidades, políticas e ações de adaptação.

Elas podem ser submetidas como documentos independentes ou como parte das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), os compromissos climáticos que todo país precisa apresentar. 

Embora o Brasil tenha enviado algumas informações, até hoje não submeteu um relatório de comunicação de adaptação à UNFCCC que esteja à altura dos requisitos. Esta lacuna não apenas reflete a falta de estruturação na abordagem brasileira, mas também destaca o atraso do país na agenda de adaptação climática.

A COP28 e a adaptação climática

Conforme a COP28 se aproxima, o relatório do Pnuma sublinha a necessidade de um acordo decisivo sobre o Objetivo Global de Adaptação em Dubai. Esse objetivo é crucial para lidar com os efeitos já visíveis da mudança global do clima e se preparar para o que vem aí – estamos sentindo apenas o início dos impactos.

O que se pede não é nada menos do que uma transformação dos sistemas sociais: desde onde e como vamos plantar, onde e como vamos habitar, como adequar os sistemas de saúde para lidar com os impactos, além de outras tantas “adaptações”. 

O apelo é claro: é preciso agir agora para fechar a lacuna de adaptação. Os países desenvolvidos devem liderar o aumento do financiamento, priorizando doações sobre empréstimos.

Os planos de adaptação devem se transformar em planos de investimento concretos, com a colaboração de governos, financiadores, parceiros de desenvolvimento e a sociedade civil. A implementação de sistemas de alerta precoce até 2027 e a operacionalização do Fundo de Perdas e Danos na COP28 são medidas cruciais que devem ser adotadas.

No Brasil, e particularmente nos estados afetados pelos extremos – o momento é de coragem e liderança, com a necessidade de reforçar políticas climáticas efetivas e apoiar a adaptação das comunidades às realidades do clima em transformação.

O Amazonas, um pioneiro em políticas climáticas que me serviu de escola profissional na seara pública, tem o potencial de fornecer respostas duradouras e inovadoras para sua crise. Afinal, como diz o poeta Thiago de Melo, “a coragem é a mais alta forma de cautela”, e é com coragem que devemos enfrentar a emergência climática atual.