A decisão do Artigo 6 nesta COP 29 veio com um gosto de fim de uma era. Depois de nove anos de discussões, finalmente foi fechado o pacote de regras que vai permitir o pleno funcionamento dos instrumentos de mercado de carbono do Artigo 6 do Acordo de Paris.
Agora, o Secretariado da UNFCCC (a Convenção do Clima da ONU) e o Órgão Supervisor do Mecanismo do Artigo 6.4 do Acordo de Paris (SBM) já possuem todas as orientações necessárias para implementar a infraestrutura e as ferramentas de relato e revisão das informações sobre transferência de resultados de mitigação entre os países; e para elaborar os standards e procedimentos, e aprovar metodologias no âmbito do recentemente intitulado “Mecanismo de Crédito do Acordo Paris” (PACM, na sigla em inglês).
Explicamos abaixo o que ficou decidido em Baku, no Azerbaijão.
1. Critérios para aprovação das metodologias do PACM, inclusive de atividades de remoção
O pontapé inicial foi uma decisão procedimental logo na plenária de abertura da COP29, sobre os requisitos para a aprovação de metodologias de atividades de redução e de remoção de GEE da atmosfera.
Esses requisitos serão a base para a seleção de atividades que poderão emitir as unidades certificadas de emissões. O SBM – órgão composto por 12 membros representantes dos países membros do Acordo de Paris – já havia elaborado um primeiro conjunto de critérios, que deveriam ser formalmente adotados pelos países na conferência.
Na abertura da COP de Baku, os países simplesmente abriram mão de discutir esses critérios e concordaram em deixar o SBM seguir adiante com a regulamentação. Ao longo das semanas seguintes, foram adicionadas outras orientações ao SBM.
Uma delas prevê que se assegure ao SBM expertise técnica e científica adequada para apoiar seu trabalho. O órgão realizará consultas a especialistas independentes, partes interessadas e comunidades locais, e incluirá os conhecimentos e práticas dos povos indígenas.
Cabe notar que hoje as reuniões do SBM já são transmitidas online. Observadores credenciados têm espaço para fazer considerações orais durante a reunião.
Em uma tentativa de conectar as discussões com a Convenção de Diversidade Biológica (CDB), pediu-se que o SBM considere os “tratados ambientais internacionais relevantes” ao elaborar seus critérios relacionados às metodologias do PACM.
Essa conexão pode permitir que elementos de co-benefícios de ganhos de biodiversidade e salvaguardas sociais e ambientais utilizadas na CDB, por exemplo, sejam trazidos para as metodologias do PACM.
A decisão ainda concedeu extensão de prazo para a transição de atividades de aflorestamento e reflorestamento já registradas sob o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL, do Protocolo de Kyoto) para o PACM, cujo pedido de transição deve ser solicitado e aprovado pela Autoridade Nacional Designada até 31 de dezembro de 2025.
2. Processo de emissão de créditos de carbono do PACM
Uma etapa importante do processo de geração de créditos de carbono do PACM é a declaração de autorização de ajustes correspondentes pelo país anfitrião da atividade.
Os ajustes correspondentes são necessários caso os créditos sejam usados para cumprimento da NDC do país comprador, ou para “outro propósito de mitigação internacional” – se os créditos forem utilizados no sistema de comércio de emissões da aviação civil internacional, o Corsia.
Foi decidido que essa declaração deve ser apresentada o quanto antes possível no processo, e nela deve haver uma manifestação expressa do país anfitrião, seja pela autorização ou pela não-autorização.
Há ainda a possibilidade de o anfitrião decidir pela autorização posteriormente, e provisoriamente requerer que tais créditos sejam emitidos como Contribuições para Mitigação. Trata-se de unidades que podem ser usadas para outros fins que não aqueles sujeitos a ajustes correspondentes (em mercados domésticos e mercados voluntários de carbono), desde que isso aconteça antes de qualquer transferência dessas unidades, em um prazo a ser estipulado pelo SBM.
Cabe lembrar que sobre os créditos de carbono do PACM incidirá uma taxa de 5% da receita a ser automaticamente destinada ao Fundo de Adaptação da UNFCCC. Serão também descontados 2% dos créditos de carbono gerados, que são enviados para uma conta de cancelamento automático.
A ideia é garantir um resultado que vá além do jogo de soma zero das compensações, com resultado na mitigação global de gases de efeito estufa. Essas cobranças incidem em qualquer situação, seja para créditos com ou sem autorização de ajustes correspondentes.
3. Transferências entre países (os famigerados ITMOs)
Enquanto no PACM são gerados créditos de carbono a partir de projetos ou programas de atividades certificados pelo mecanismo, também é possível que os países firmem “abordagens cooperativas”, incluindo acordos de cooperação entre si, em relação aos seus resultados de mitigação que excederem o atingimento de suas NDCs.
Seja para os créditos gerados no PACM, seja para os resultados de mitigação transferidos em acordos de cooperação, sempre que essas transferências forem autorizadas pelo país onde se deu a redução ou remoção de emissões esses títulos serão considerados ITMOs, sigla em inglês para resultados de mitigação transferidos internacionalmente.
Logo, um crédito emitido pelo PACM autorizado para fins de uso para NDC ou outros propósitos de mitigação internacional torna-se também um ITMO.
Também houve grande discussão quanto à possibilidade, ou não, de alterações ou cancelamento das autorizações de ITMOs. Havia muita insegurança de que, se ITMOs fossem transacionados para fins de cumprimento de NDCs e depois as autorizações fossem canceladas, isso poderia afetar a contabilidade de cumprimento de NDCs reportada no Acordo de Paris.
Essa situação foi resolvida com a previsão de que autorizações de ITMOs só podem ser canceladas antes da sua primeira transferência, ou, se depois, desde que existam contratos previamente dispondo a respeito.
As regras para relato das informações relacionadas a abordagens cooperativas e transferências de ITMOs foram finalizadas, com a recomendação de que informações adicionais sejam prestadas pelos países. Dentre elas, inclui-se a informação sobre como foi estabelecida a linha de base e como se levou em consideração a NDC do país e suas políticas e leis climáticas relevantes para a originação dos ITMOs.
Também foram adotados os formulários e tabelas a serem utilizados para o relato anual de informações, mas com o pedido de que sejam aprimorados a partir de um relatório técnico a ser elaborado pelo Secretariado no ano que vem.
Para lembrar: as transferências de resultados de mitigação são feitas entre países ou atores privados a partir de seus registros nacionais ou registros privados. Os países precisam reportar essas transferências – e o lastro delas – para uma plataforma central de informações e contabilidade do Acordo de Paris, que vai registrar e verificar as informações. Requer-se que os números só sejam refletidos nas NDCs depois de resolvidas eventuais inconsistências.
Persistências significativas e recorrentes serão sinalizadas em um relatório público que poderá ser inclusive acessado pelo Comitê de Compliance do Acordo de Paris para tomar as medidas cabíveis.
Um dos pontos mais críticos na negociação foi a interoperabilidade e as funcionalidades do registro internacional do Artigo 6.2. Decisões passadas haviam definido que esse registro serviria também para apoiar países que não possuem um registro nacional próprio.
Para os Estados Unidos, contudo, isso não significa que o registro internacional exercesse funções transacionais, mas apenas de visualização das transferências. Para solucionar essa controvérsia, foi definido que o Secretariado da Convenção, na condição de administrador do registro internacional, operará serviços adicionais de registro e emissão de ITMOs para países que ainda não tiverem criado seus próprios registros.
Além disso, o Registro Internacional do Artigo 6.2 terá interoperabilidade com o registro do PACM.
Abordagens não-mercadológicas
E também há a possibilidade de essas cooperações acontecerem por meio de abordagens não-mercadológicas (Artigo 6.8). O objetivo é proporcionar a troca de informações sobre iniciativas de mitigação e adaptação climática em desenvolvimento, casos de sucesso, ou projetos aguardando apoio financeiro.
A ideia é conectá-las a iniciativas ou interesse de atores públicos e privados em contribuir por meio do compartilhamento de tecnologias, capacitação e recursos financeiros.
Isso poderia incluir por exemplo projetos de REDD+, programas de capacitação para agricultura sustentável, proteção de matas ciliares por comunidades locais, parcerias entre governo e organizações não-governamentais para ecoturismo, entre inúmeras outras possibilidades.
Nesse campo de oportunidades do artigo 6.8, o Brasil tem muito a oferecer e, também, a usufruir. Dividir com outros países os projetos de sucesso que temos em casa, assim como se inspirar em outros que tenham grande potencial na realidade brasileira – sem contar as oportunidades de transferência de tecnologia e apoio em programas de capacitação e financiamento que possam aparecer no meio do caminho – já justificam um futuro protagonismo do país nesse instrumento.
Saldo positivo
Embora haja muitos motivos para comemorar a decisão final do artigo 6, a verdade é que a solução não foi perfeita. Em diversos aspectos, poderia haver obrigações adicionais e procedimentos mais robustos que garantissem maior integridade ambiental ao sistema. Mas acredita-se que há suficientes comandos e instâncias de transparência de informações para se promover o necessário escrutínio, inclusive pelos stakeholders, por meio das reuniões e processos de consulta pública do SBM.
O Artigo 6 ainda está longe de ser acabado, pois sua implementação é que vai dizer quais regras e processos que funcionam e quais precisam ser ajustados. E a próxima rodada de NDCs em 2025 pode impulsionar a demanda e uso de ITMOs e outras abordagens e unidades.
Só então poderemos enxergar na prática o que até aqui são discussões muito abstratas sobre registros e tabelas. Saberemos como o Artigo 6 pode ser realmente utilizado para cumprir sua finalidade maior de promover mais ambição na mitigação da mudança do clima.
*Caroline Prolo é sócia da fama re.capital e co-fundadora da Laclima (Latin American
Climate Lawyers Initiative for Mobilizing Action).
Juliana Marcussi é consultora-sênior em mercados de carbono da Laclima