Ajuda aos países pobres escancara as profundas divisões na COP

Programa de socorro a nações vulneráveis liderado pela Alemanha é chamado de manobra diversionista; EUA mandam recado aos chineses

Quatro pessoas andam por uma rua tomada pela enchente no Paquistão.
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Sharm el-Sheikh – Dado o destaque do tema perdas e danos nesta COP, o anúncio de um mecanismo financeiro para ajudar alguns dos países mais pobres do mundo a pagar a conta dos prejuízos já causados pela mudança climática deveria ser motivo para otimismo.

Mas as reações foram definitivamente divididas. Algumas entidades influentes que lutam por justiça climática afirmam que o modelo simplesmente não faz sentido. Outras enxergaram uma manobra diversionista.

Batizada de Global Shield (ou “escudo global”), a iniciativa foi desenvolvida em conjunto pelo G7, que reúne maiores economias do mundo, e o V-20, um grupo de 58 economias particularmente vulneráveis às consequências do aquecimento do planeta.

O esquema funciona como um seguro, que pode ser acessado em caso de eventos climáticos extremos, como as enchentes massivas ou secas prolongadas. Um dos principais objetivos é que os recursos possam chegar com rapidez aos países afetados.

As cifras mirradas frente ao tamanho do problema são o primeiro alvo de críticas. A primeira contribuição, de US$ 172 milhões, foi feita pela Alemanha. Canadá, Irlanda e Dinamarca vão colocar mais US$ 40 milhões no fundo, e instituições multilaterais e parceiros do setor privado também devem colaborar com o programa.

A título de comparação, estima-se que somente as enchentes massivas que atingiram o Paquistão nos últimos meses causaram prejuízos na casa dos US$ 40 bilhões. 

“Nossa situação fiscal está sob ameaça constante, e pressões inflacionárias e a mudança do clima estão reduzindo nossas opções”, disse o ministro das Finanças de Gana, Ken Ofori-Atta, em mensagem de vídeo exibida no pequeno e abarrotado auditório do V-20 na COP27.

Bangladesh, Fiji, Paquistão, Filipinas, Senegal e Gana estão no primeiro grupo de países que poderão acessar o Global Shield.

Os integrantes do V-20 estimam ter sofrido prejuízos de cerca de US$ 525 bilhões por causa da mudança do clima, um fenômeno pelo qual eles têm quase nenhuma responsabilidade histórica.

Somente nos próximos quatro anos, esses países terão de pagar outros US$ 500 bilhões de dívidas externas.

“É uma espiral negativa sem fim”, diz ao Reset Sarah Ahmed, assessora financeira do V-20. “Países endividados sofrem com catástrofes naturais e precisam tomar novos empréstimos para se recuperar.”

Desvio do foco

Apesar das intenções nobres, certas entidades responderam com um grau de ceticismo que beirava a incredulidade. Harjeet Singh, responsável por políticas estratégicas globais da influente ONG Climate Action Network (CAN),  afirmou que o desenho não funciona porque eventos do clima estão se tornando “inseguráveis”.

“Existem vários lugares na Europa e nos Estados Unidos em que não é mais viável comprar seguros por causa da frequência e da intensidade dos eventos climáticos extremos”, afirmou Singh. “Isso é uma enganação.”

Mas o ponto mais importante, segundo a CAN e outros observadores, é desviar a atenção das conversas que acontecem nas salas de negociações da COP27.

Criar mecanismos paralelos, e de valores relativamente baixos, enquanto se discute — pela primeira vez — uma solução abrangente no âmbito da Convenção do Clima seria um tiro no pé.

Em nota, a ActionAid International afirmou que o Global Shield não vai oferecer ajuda para impactos que se fazem sentir ao longo do tempo, como o aumento do nível dos oceanos e a desertificação.

Na linguagem oficial, os alemães fizeram referência textual a “perdas e danos”, o tema mais contencioso da conferência deste ano.

O presidente americano, Joe Biden, não mencionou essas palavras no discurso que fez na sexta, mas afirmou que os Estados Unidos apoiariam o Global Shield.

A avaliação de alguns é que programas como esse seriam na verdade um escudo para os países ricos. Enquanto suas delegações colocam obstáculos nas conversas formais, mecanismos paralelos serviriam para “mostrar serviço”.

Marcando posição

A presença de John Kerry no estande do V-20, num canto escondido de um pavilhão, perto de uma porta que dá para os banheiros, foi uma sinalização clara da posição americana.

Em um curto pronunciamento, o enviado especial da Casa Branca para assuntos do clima refletiu tensões que pairam sobre a COP27 e também sobre o encontro dos líderes do G20, que acontece em Bali, na Indonésia.

Países como China e Índia vêm trabalhando nos bastidores para tirar as referências a 1,5°C dos documentos da COP, alegando que esse nível de ambição — ou seja, de cortes de emissões — os obrigaria a pisar no freio da economia. Ambos os países ainda dependem dos combustíveis fósseis como fonte de energia.

“Não se trata só de justiça climática, que está na agenda [oficial da COP]. Também temos de reconhecer que no G20 há países que estão no caminho [para cumprir suas metas] e outros que não estão. Se esses países não se alinharem, vamos passar batido pelo 1,5°C”, afirmou Kerry.

Biden e seu par chinês, Xi Jinping, estiveram reunidos durante quatro horas em Bali. Apesar de a reaproximação não ter resultado em um comunicado conjunto, os dois líderes concordaram em trabalhar juntos na agenda climática.

Mas a controvérsia em torno do Global Shield, e o recado enviado por Kerry a chineses e indianos, mostram o difícil trabalho da presidência egípcia da COP27 para conseguir algum resultado positivo até sexta-feira.  

* O jornalista viaja a convite da International Chamber of Commerce