A partir de janeiro de 2027 as empresas aéreas brasileiras serão obrigadas a incluir nos tanques de seus aviões um pouco de combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês) junto com o querosene de origem fóssil.
Mas elas ainda não sabem como – e se – conseguirão se adequar à regulamentação, diz Raquel Argentino, líder de Sustentabilidade da Latam.
“Os produtores perguntam às companhias: ‘Vocês garantem que vão comprar?’ E as companhias aéreas perguntam de volta: ‘Vocês vão vender qual SAF, em qual volume, com qual preço?’”, afirma a executiva. “Parece um baile de adolescentes. Ninguém tira ninguém para dançar.”
A descarbonização dos voos no Brasil foi um dos temas de do evento ”Energia em Transição: Das Oportunidades na Prática Empresarial às Vantagens Competitivas no Brasil”, realizado pelo Reset na terça-feira (14), com patrocínio de Natura, Itaú, BRF Marfrig, Bradesco, Suzano, Banco ABC Brasil, Eletrobras e Santander.
O prazo está se aproximando, mas ainda há muitas incertezas sobre como se dará na prática a transição de um dos setores em que é mais difícil cortar as emissões de carbono.
A mistura do SAF ao querosene de aviação convencional vai aumentar gradualmente, conforme determinado pela Lei do Combustível do Futuro.
Mas a conta não é baseada em volume, como ocorre no caso do etanol adicionado à gasolina ou no biodiesel misturado ao diesel convencional. A regra brasileira considera a redução das emissões do SAF na comparação com o querosene fóssil, e o cálculo leva em conta a cadeia produtiva inteira.
Na fase inicial, o corte nas emissões deve ser de 1% nos voos domésticos.

“Somos agnósticos em tecnologias e matérias-primas. Só importa a eficiência”, afirmou Marcelo Bernardes, superintendente de governança e meio ambiente da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC).
Só que o SAF pode ser feito por pelo menos 11 rotas tecnológicas no momento (e contando), que podem agregar ou não um promissor uso de energia solar no processo; e a partir de uma infinidade de matérias-primas orgânicas, incluindo cana, soja, eucalipto, milho, macaúba, dendê, agave, óleo de cozinha reciclado, gordura animal, resíduos orgânicos em geral e até carbono capturado de processos industriais ou removido da atmosfera.
Como a medida da redução de emissões considera a cadeia produtiva completa, cada métodos resulta em níveis diferentes de impacto climático.
“Quando a empresa aérea vai comprar o SAF, se ele tiver uma pegada ruim de carbono, ela vai ter que comprar um volume maior para poder compensar”, diz Bernardes. “Se for um combustível SAF com uma pegada boa, ela compra um volume menor.”
Onde está o SAF?
Além de lidar com essa complexidade extra para o cumprimento das obrigações por parte das empresas, as aéreas têm de lidar com outro problema: a oferta insuficiente.
“Não tem o produto no mercado”, diz Argentino, da Latam. Ela afirma que entraves atrasam a estruturação da cadeia, incluindo incertezas geopolíticas.
A vocação do país é produzir esse combustível verde usando produtos agrícolas como matéria-prima. Mas há resistênca de alguns compradores. “A gente recebe embargos da Europa, principalmente pelo uso do milho, pois eles falam que é concorrencial com a segurança alimentar”, afirma Argentino.
Ela menciona alguns avanços, como incentivos fiscais para a compra de equipamentos importados e a isenção de certos tributos para as biorrefinarias, que farão a transformação de óleos vegetais ou animais em SAF.
Isso tem impacto de curto prazo para as aéreas e de longo prazo para o país, diz Raquel Argentino. “Não pode ocorrer de o Brasil ser novamente um exportador de commodity”, afirma ela, mencionando um cenário em que a matéria-prima colhida aqui seja processada no exterior.
Compatibilidade
Mas há outros desafios, segundo Argentino. O SAF precisa de uma certificação que garanta o respeito a muitos critérios, não só de desempenho e segurança compatíveis com os combustíveis tradicionais para aeronaves, mas também à sustentabilidade socioambiental de seu ciclo de vida.
Até agora, as normas de certificação em discussão no Brasil não chegaram à compatibilidade com as internacionais. Os modelos que estimam o impacto da produção agrícola “foram feitos nos Estados Unidos ou na Europa”, afirma Bernardes.
Aceitar essas premissas abre um precedente perigoso para o país nas negociações internacionais sobre sustentabilidade no agronegócio. O país pode ser um gigante na agricultura, mas é um nanico na aviação civil internacional – daí a dificuldade para fazer valer suas posições nesse debate.
“Se não houver essa harmonização, vamos ficar com dois SAF, um doméstico, outro internacional”, diz a executiva da Latam. “Vai ser um choque regulatório.”
Por “choque”, entenda-se dificuldade para o produtor exportar, custo maior para a companhia aérea e, provavelmente, passagens mais caras. O combustível representa 40% do custo das empresas, e hoje um litro de SAF é vendido por um preço entre três e cinco vezes o do querosene de aviação.
Brasil exportador
A ANP (Agência Nacional do Petróleo) foi encarregada pela Lei do Combustível do Futuro de elaborar a análise do ciclo de vida que vai orientar a certificação do SAF. Ela tem de se pautar por uma “busca pelo alinhamento metodológico” com os critérios adotados pela Organização de Aviação Civil Internacional (OACI).
Harmonizar é fundamental para que esses empreendimentos sejam viáveis, afirma Bernardes: “Precisamos da escala oferecida pelo mercado internacional”.
Existem projetos ambiciosos de construir no Brasil usinas dedicadas ao SAF, entre eles o da Acelen, empresa controlada pelo Mubadala, o fundo soberano do emirado árabe de Abu Dhabi. A companhia vai usar a macaúba, uma palmeira nativa, como matéria-prima.
Sem as condições para que esses empreendimentos avancem, o país corre o risco de “financiar a transição energética dos outros países” meramente exportandos insumos básicos, afirma Argentino, da Latam. Depender da importação do produto final vai acabar encarecendo as passagens. “Se a gente está falando realmente de uma transição energética justa, a gente está afastando cada vez mais aquele brasileiro que nunca subiu no avião”, afirma.