Mesmo com seu Nobel de Economia conquistado em 2019, Esther Duflo diz que vinha pregando no deserto havia dois anos sobre sua mais recente proposta no campo do combate à pobreza, quando ganhou os holofotes de forma inesperada em abril deste ano. O destaque foi proporcionado pelo Brasil, mais especificamente pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Na presidência rotativa do G20, o governo brasileiro convidou Duflo para falar de sua ideia num jantar com as lideranças econômicas do grupo em Washington, durante o encontro de primavera do Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial.
De forma resumida, ela sugere que os recursos arrecadados pela taxação de bilionários, ideia também encampada pelo Brasil no G20 e proposta por seu colega francês Gabriel Zucman, se somem a um aumento da alíquota recém-criada sobre o lucro das corporações multinacionais, de 15% para 21%, para criar um fundo global de adaptação climática.
Os recursos, então, seriam majoritariamente usados para fazer transferências em dinheiro diretamente para as pessoas afetadas por eventos climáticos extremos – de preferência antes de acontecerem –, numa espécie de ‘Pix do desastre climático’.
Seria uma forma de os países ricos, os grandes emissores de gases de efeito-estufa, saldarem o que ela chama de ‘obrigação moral’ que têm com os mais pobres, que sentirão os efeitos do aquecimento de forma mais dramática.
“Agora tenho a sensação de que a ideia está de verdade na mesa. Não significa que vai acontecer, necessariamente. E, se acontecer, não vai ser imediatamente”, disse ela em entrevista ao Reset.
Dias frenéticos
Diante da chuva de convites e pedidos de entrevista, Duflo tem agarrado todas as chances que surgem para disseminar sua ideia e tentar conquistar adeptos nas mais variadas rodas.
Em sua primeira vinda ao Brasil, nesta semana, a saga foi frenética.
Inicialmente convidada a viajar ao país pela Febraban, que reúne os bancos brasileiros, para ser a palestrante principal da gigantesca feira anual de tecnologia bancária, a economista logo viu sua agenda lotar.
Ela desembarcou na última terça-feira em São Paulo, onde, na quarta, repetiu suas ideias por pelo menos cinco vezes para distintas audiências. Na quinta bem cedo participou virtualmente de um evento sobre educação infantil – outro tema caro a ela e que será objeto do próximo trabalho no Brasil do J-PAL, o centro de estudos que ela ajudou a fundar no MIT no país.
À tarde voou para Brasília, onde um encontro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acabou não acontecendo. Depois de almoçar com alguns ministros e secretários, iniciou a volta à França, onde vive com marido e parceiro de Nobel, Abhijit Banerjee, e os dois filhos do casal.
A reportagem do Reset acompanhou boa parte da maratona da economista por São Paulo – com direito a uma carona-entrevista de pouco mais de 30 minutos em meio ao trânsito caótico de fim de expediente (leia abaixo).
“Tem sido corrido. Mas é bom, muita gente boa para conhecer”, disse ela.
Ovação…
O dia começou com um café da manhã com a equipe brasileira do J-PAL e terminou às 23h com um jantar oferecido pela socióloga e acionista do Itaú Unibanco Neca Setubal, com a presença da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Eram cerca de 40 convidados, entre eles, os economistas André Lara Resende e Ricardo Paes de Barros; o CEO da Natura Holding, Fábio Barbosa; o ex-presidente do Itaú Unibanco Candido Bracher e a esposa Teresa; a acionista do banco e fundadora do Instituto Alana, Ana Lúcia Villela, e a filósofa e escritora Sueli Carneiro.
A primeira fala pública foi no Sesc 14 Bis, com quase todos os 513 lugares do auditório tomados.
Embora Duflo seja fluente no inglês, já que viveu mais tempo nos Estados Unidos, onde leciona no MIT, do que na França, a palestra foi feita em francês. Uma cortesia ao Consulado Geral da França, um dos organizadores do evento, e uma surpresa para o público, que precisou correr para a fila dos equipamentos de tradução simultânea.
Slides impactantes recheados de dados foram usados para contextualizar sua proposta: os países ricos e as pessoas mais ricas de qualquer país são as maiores emissoras de carbono, quando se considera não apenas onde os produtos são fabricados, mas também onde são consumidos.
É intuitivo: quem tem mais dinheiro, consome muito mais – de tudo. Uma pessoa na faixa de renda mais alta nos Estados Unidos, diz ela, emite 122 vezes mais carbono do que outra na faixa de renda inferior num país da África.
Ao mesmo tempo, os países pobres já se situam na faixa mais quente do planeta e sofrerão mais com a elevação das temperaturas, enquanto pessoas pobres em qualquer país sempre estarão mais expostas aos efeitos do calor: sem acesso a ar-condicionado, obrigadas a trabalhar ao ar livre. Resultado: estima-se que morrerão 6 milhões de pessoas a mais daqui até 2100 por conta desses efeitos.
Usando dados de colegas economistas, ela atribuiu um valor em dinheiro às vidas humanas potencialmente perdidas. “A emissão de 1 tonelada de CO2 equivale ao custo social de US$ 37 na vida humana, incluindo doenças e mortes prematuras”, disse.
Duflo, então, multiplica a cifra pelas 14 bilhões de toneladas de CO2 emitidas anualmente por Estados Unidos e Europa et voilà: o custo dessas emissões em vidas humanas equivaleria a US$ 518 bilhões por ano.
Esse é o valor, segundo Duflo, da dívida moral que precisa ser paga via sua proposta.
O público daquela apresentação da manhã, majoritariamente universitário, foi a mais empolgada audiência do dia e a aplaudiu em pé e demoradamente ao fim da palestra de 35 minutos.
… e um pouco de ceticismo
Da região da Bela Vista, onde fica o Sesc, ela rumou para o Jardim Paulistano, onde foi recebida num almoço só para convidados oferecido pelo economista Pérsio Arida, no Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP), grupo de discussões sobre economia e política dirigido por ele. Ali, um pequeno grupo de pouco mais de 10 pessoas, entre economistas e banqueiros, teve a chance de uma interação mais próxima.
Uma breve pausa, uma troca de roupa e Duflo partiu para a zona Sul da cidade, onde seria a “atração principal” da FebrabanTech.
Numa arena montada no meio da feira, cercada por estandes luminosos, música e um drone que sobrevoava sua cabeça, ela fez uma apresentação mais enxuta, seguida de uma sessão de perguntas e respostas conduzida por Maurício Minas, conselheiro de administração do Bradesco.
Ela mesma não se ouvia em meio à balbúrdia, mas o público usava fones e conseguiu acompanhar as ideias da ganhadora do Nobel.
Já passava das 18h30 quando, visivelmente cansada, a economista subiu no carro para o último compromisso do seu dia sem fim. Na casa de Neca Setubal, já a aguardavam a ministra Marina Silva e a secretária de Mudança do Clima, Ana Toni, para uma conversa privada.
Depois de algumas rodadas de vinho francês e belisquetes, a economista enfrentou alguma dificuldade para transmitir ideias complexas sem o apoio de slides ou microfone. Encerrou a fala se dizendo agradecida ao governo brasileiro pela projeção e contando uma anedota: um dos primeiros a ouvir sua proposta, seu irmão teria dito “nunca vai acontecer”.
Recebeu poucos questionamentos públicos dos presentes. Alguns preferiram tirar dúvidas e expressar opiniões tête-à-tête.
Nas rodinhas, o que se ouviam eram comentários de apoio ao conceito geral temperados por uma enorme dose de ceticismo quanto às chances de a proposta sair do papel. “Acho que o irmão dela estava certo”, comentou um deles, privadamente.
A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida no trajeto entre a FebrabanTech e a casa de Neca Setubal:
Você é reconhecida pelo seu trabalho no combate à pobreza, mas agora você tem sido mais vocal sobre as mudanças climáticas. Por que?
Primeiro, porque as pessoas pobres são as mais afetadas pelas alterações climáticas. Elas já vivem em regiões do planeta naturalmente mais quentes e que vão ficar ainda mais quentes na próxima década ou depois. Além disso, a pobreza torna as alterações climáticas mais perigosas. Então, os pobres são os mais afetados pelas mudanças climáticas, não há dúvida sobre isso.
O segundo motivo é que temos visto muitos progressos contra a pobreza nas últimas décadas e eles poderão ser eliminados pelas alterações climáticas ou grandemente revertidos. Como economista do desenvolvimento que está interessada na vida dos pobres, preciso estar atenta ao que vai acontecer com o clima.
No seu livro “Boa Economia para Tempos Difíceis”, um capítulo é dedicado às mudanças climáticas e você defende o preço do carbono como um incentivo para mudança de comportamento e mitigação das pessoas e empresas. Agora você está mais voltada à proposta de criar o fundo de adaptação, com base no cálculo do custo das vidas perdidas. Mudou seu foco?
Não substituí uma coisa pela outra. Precisamos de um preço do carbono para levar à mitigação. Mas esta nova proposta não é sobre mitigação, é sobre compensação. São complementares.
Você poderia sugerir financiar o fundo através do preço do carbono [ela ouviu essa sugestão durante o almoço no CDPP, segundo um dos presentes]. Esqueça os bilionários e apenas imponha um imposto sobre o carbono aos países ricos e use isso para financiar o fundo de adaptação.
O problema é que a precificação do carbono é profundamente impopular nos países ricos. E o fundo de adaptação não precisa estar relacionado ao carbono, não há nenhuma ligação lógica entre os dois.
Na sua proposta, você defende que o dinheiro da taxação de empresas e bilionários vá para um fundo global para ser distribuído via transferências diretas às pessoas. Quais são as chances de os países que arrecadarem esses valores abrirem mão de incorporá-los a seus orçamentos internos?
Eu não sei. Mas acho que eles deveriam se dar conta que precisam pagar essa dívida moral. Ou porque percebem que é a coisa certa a fazer ou porque pensam que é a única maneira de obter a cooperação dos países pobres para mitigar as emissões.
Nesse caso, precisam encontrar o dinheiro em algum lugar e esse é um lugar tão bom quanto qualquer outro, porque o bilionário ou a corporação internacional ganham dinheiro pelo mundo. São franceses ou americanos, mas o dinheiro deles é feito em todo o planeta.
O dinheiro que a Amazon ganha, por exemplo, é realmente certo pensar nele como um dinheiro americano? Os consumidores estão em toda parte, os produtores estão em toda parte. Acho que podemos pensar nessas fortunas como sendo internacionais.
Faz sentido, mas, na prática…
Em termos práticos, há oposição. É preciso explicar por que faz sentido. Com o passar dos anos, os países pobres e de renda média tornaram-se cada vez mais eloquentes sobre a necessidade de serem compensados, e acho que vão chegar num ponto em que não estarão muito interessados em cooperar em nada com a mitigação. E, quando esse imperativo se tornar grande o suficiente, então cada país terá que encontrar o dinheiro em algum lugar.
Em Bonn [na reunião preparatória do COP deste ano], este mês, houve uma espécie de COP das Finanças e já estava sobre a mesa como financiar a adaptação e transição dos países. O fundo de adaptação está vazio e os países estão cada vez mais chateados com isso.
Há uma desconfiança natural sobre as garantias de que os recursos arrecadados e transferidos às pessoas seriam efetivamente utilizados para adaptação ou reparação climática. Como você vê isso?
Existem 130 estudos sobre transferências de dinheiro, que foram recentemente revisados por Dean Karlan e Chris Udry [professores da Northwestern University], que mostraram de forma absolutamente conclusiva que as transferências de dinheiro foram bem usadas. Acho que agora esse é um dos fatos mais bem estabelecidos na literatura.
Mas, nesse caso, trata-se de um uso bastante específico. Por exemplo, no Rio Grande do Sul, se as pessoas em áreas vulneráveis tivessem recebido o dinheiro antes das inundações, o que elas poderiam ter feito sozinhas para evitar as consequências da tragédia?
Poderiam ter se mudado, poderiam ter colocado seus bens acima do nível da água…
Este é o meu ponto: são medidas específicas que as famílias teriam que ter tomado. Você acha que essas transferências em dinheiro deveriam vir com algum tipo de suporte técnico para que as pessoas saibam se preparar?
Não, acho que deveria vir sem nada. Sempre tentamos tomar decisões em nome das pessoas e, ao fazer isso, estamos apenas adicionando camadas e mais camadas de controles.
Fundamentalmente, o dinheiro não é nosso, é deles. É um dinheiro que devemos a eles. Então, na verdade, poderíamos simplesmente dar o dinheiro como transferências, sem sequer nos preocupar com as condições climáticas. A razão pela qual prefiro vinculá-lo ao clima, e melhor ainda se for antes dos eventos climáticos, é que uma parte do dinheiro poderia ser destinada a seguros, o que seria mais protetor durante esses grandes eventos.
Então você acha que, mesmo sem ter experimentado antes algo como o que acabou de acontecer, as pessoas saberiam de antemão o que fazer para se proteger?
Sim. Não sei se todos fariam. E, mesmo que não o fizessem, pelo menos eles teriam dinheiro. E, se tivessem dinheiro, quando estivesse muito quente, não precisariam trabalhar no calor extremo. Ou se está tão quente a ponto de comprometer a colheita e derrubar os salários, não precisariam trabalhar.
Há muitas coisas boas que poderiam ser feitas simplesmente por terem dinheiro à disposição. Claro que o dinheiro não é resposta para todos os problemas do mundo ou todos aqueles relacionados ao clima, mas acho que a questão principal é: você consegue encontrar maneiras de gastar uma quantidade razoável de dinheiro de uma maneira muito transparente e fácil, com baixas despesas associadas.
A sua ideia é que os eventos climáticos desencadeariam essas transferências de dinheiro. Como exatamente?
Seria preciso fixar regras. Quando um país entrasse no esquema, você gastaria parte do dinheiro para construir a infraestrutura [financeira e tecnológica] em lugares onde ela não é perfeita.
Todos os cidadãos do país estariam conectados a esse ‘encanamento’. Você teria regras como, por exemplo: a partir de 5 dias de temperatura alta, todo mundo recebe uma transferência mínima 200 reais ou algo assim. Outra possibilidade: se um lugar for atingido repetidas vezes e se tornar inabitável, as pessoas receberão transferências por vários anos seguidos para reconstruir suas vidas em outro lugar.
Mas, de qualquer forma, eu não pensei nos detalhes das regras e não preciso pensar em todos eles. As regras teriam que ser estabelecidas por um comitê de países ou algo assim.
Você também ressalta que seria melhor que as transferências acontecessem antes dos desastres…
Sim, seria preciso ter um algoritmo [modelo matemático preditivo do clima] e o gatilho para as transferências seria o que o modelo indicasse.
Você mencionou um experimento de transferência de dinheiro feito no Togo. O que ele tem a contribuir para essa proposta?
Durante a Covid, decidiram que queriam fazer transferências para as pessoas e já havia uma operadora de telefonia com uma carteira digital no celular. Eles conseguiram convencer todas as operadoras do país a adotarem essa carteira e trabalharam com a Universidade da Califórnia, em Berkeley, para criar um sistema capaz de identificar as áreas mais pobres do país usando apenas dados de satélite.
Porque não havia tempo ou condições de verificar localmente para saber quão pobre eram as pessoas. Usaram dados de satélite e, dentro das regiões, usaram metadados de telefones celulares. As pessoas que usam mais o telefone tendem a ser mais ricas. E, desta forma, identificaram as pessoas elegíveis, que receberam o dinheiro nas carteiras no celular.
A forma de segmentação foi mais barata que outras formas e eles passaram de um sistema de transferências inexistente a um completo em duas semanas. Foi incrível.
Você disse que o Brasil está à frente da curva para tentar algo assim. Por quê?
Porque existe uma longa tradição com transferências de dinheiro e porque existe um mecanismo de decretação de calamidade. Então, as peças já estão no lugar. Inclusive, agora com as enchentes o governo já fez algo assim para transferir dinheiro para as famílias.
Tributar a riqueza envolve uma série de questões práticas complexas, como medir corretamente essa riqueza. Há quem argumente que também envolve questões como tributar bens ilíquidos ou mesmo ativos que tiveram perdas em vez de valorização em determinado período. Qual a sua visão sobre isso?
Estamos falando das 3 mil pessoas mais ricas do mundo e não há ano em que elas não tenham dinheiro suficiente para que possam dar 2% de sua riqueza. Não estamos falando de uma pessoa que tem seu dinheiro todo em uma casa ou numa empresa totalmente ilíquida. São pessoas que não perdem dinheiro em um ano normal.
Aqui no Brasil você veio conversar com diferentes públicos sobre essa proposta, certo? Você tem feito isso em muitos países?
Eu tenho feito isso, sim, para todo mundo que queira ouvir, na França, nos Estados Unidos, no Brasil.
Parece haver mais interesse agora. Algo mudou?
Sim, sim, sim. Com certeza. Depois que fui convidada para a reunião do G20 em abril pelo ministro Haddad. Antes disso eu já estava falando sobre, em todos os lugares, para a diretoria do FMI, mas não teve muito interesse. Até abril, quando começou a ser divulgado pela imprensa, pela sociedade civil e pelas pessoas ricas. É muito interessante como isso aconteceu. Sou grata pela oportunidade que tive de apresentar a proposta.
Agora tenho a sensação de que a ideia está de verdade na mesa. Não significa que vai acontecer, necessariamente. E, se acontecer, não vai ser imediatamente. Mas tornou-se parte da conversa, o que é muito bom de ver.