O governo do Acre assinou em dezembro, durante a COP28, uma carta de intenções para vender um tipo diferente de crédito de carbono para empresas interessadas em compensar suas emissões de gases de efeito estufa.
São ativos que remuneram atividades de conservação da floresta, exatamente como a maioria dos créditos gerados hoje no país. A diferença é que eles são gerados em jurisdições inteiras, como um Estado, e não em projetos realizados em áreas circunscritas e tipicamente privadas.
Chamados de créditos jurisdicionais, eles em tese oferecem mais segurança ao comprador justamente por abarcar regiões maiores.
“Imagine um projeto individual bem-sucedido, mas cercado de desmatamento por todos os lados”, diz Leonardo Carvalho, presidente do Instituto de Mudanças Climáticas, uma autarquia acreana. “Faria sentido comprar créditos dessa ilha de conservação?”
Uma das vantagens dos sistemas jurisdicionais é justamente a proteção contra essa migração do desmate para áreas vizinhas, conhecida como “vazamento”, pois a metodologia leva em conta os resultados do Estado como um todo.
Os créditos jurisdicionais também embutem – em tese – garantias contra o superfaturamento do carbono que deixou de ser lançado na atmosfera. Denúncias de exageros do benefício climático, entre outras irregularidades, abriram uma crise sem precedentes no mercado dos créditos de carbono ao longo dos últimos meses.
Com uma série de iniciativas de autorregulação e de colaboração entre os participantes do mercado, o setor tenta recuperar a credibilidade – e os sistemas jurisdicionais são parte central desse esforço.
US$ 2 bi
“Trabalho com isso há 20 anos e nesse tempo vi pelo menos uns três grandes tombos no mercado voluntário”, disse ao Reset Eron Bloomgarden, CEO da ONG ambiental Emergent. “Não podemos mais cair nessas armadilhas.”
Bloomgarden foi um dos idealizadores da Coalizão Leaf, um grupo de 30 grandes empresas formado há dois anos que se comprometeram a investir cerca de US$ 2 bilhão exclusivamente em créditos jurisdicionais.
Foi com a Leaf que o Acre firmou o protocolo de intenções em Dubai. A expectativa é que até o meio deste ano sejam assinados os contratos comerciais.
O plano é vender até 10 milhões de créditos correspondentes ao carbono que deixou de ser emitido entre os anos de 2023 a 2026 graças ao combate ao desmatamento dentro de suas fronteiras.
Esta é a característica essencial do sistema jurisdicional. A jurisdição – o Acre, neste caso – faz uma medição da devastação de florestas nos últimos cinco anos e projeta o que ocorreria se a situação permanecesse inalterada.
A redução do desmatamento diante dessa linha de base é convertida em toneladas de CO2 que não foram para o ar (cada crédito equivale a uma tonelada).
O cálculo é feito para o Estado inteiro, mas a parte comercializável inclui vários descontos. Um deles serve como “seguro”, caso haja por exemplo um incêndio florestal que lance carbono na atmosfera.
Os créditos gerados nos cerca de 15 projetos privados realizados no Acre também têm de ser debitados da conta. E uma porção significativa – 40% – são de propriedade do governo federal, já que as atividades de prevenção do desmatamento são divididas entre Estado e União.
Integridade
Essa é a chave da robustez do sistema, diz Carvalho. Quase metade do total é descontado, mas o que sobra oferece o mais importante: segurança para o comprador. “É por isso que esse crédito tem alta integridade. Não tem dupla contagem, não tem vazamento.”
A expectativa é que essas características garantam um prêmio aos créditos de sistemas jurisdicionais na comparação com os gerados em projetos privados.
A intenção declarada da Leaf é comercializar cada tonelada por um mínimo de US$ 10, um valor acima dos preços médios praticados no mercado voluntário (embora haja muita variação de acordo com atributos socioeconômicos associados aos créditos).
A lista dos membros da Leaf, os potenciais compradores, inclui Amazon, Airbnb, Walmart, Delta, BlackRock e Volkswagen, entre outras companhias globais. A coalizão também recebeu doações dos governos de Estados Unidos, Noruega e Reino Unido.
A coalizão, que é administrada pela Emergent, apenas une as pontas da oferta e da demanda e não tem fins lucrativos, outro diferencial importante, segundo Bloomgarden. “Retiramos a ganância de alguns intermediários e os incentivos para que os números sejam inflados artificialmente.”
Questão de tamanho
A questão essencial, afirma Bloomgarden, é ter escala. “Hoje o mercado de créditos de carbono movimenta o que? US$ 1 bilhão? US$ 2 bilhões? Só o mercado de pets nos Estados Unidos movimenta US$ 60 bi.”
A Coalizão Leaf assinou na COP28 seus dois primeiros contratos de comercialização. Costa Rica e Gana venderão até US$ 60 milhões em créditos para empresas como Bayer, McKinsey e Fundação Walmart.
Já há conversas em andamento com os governos de Nepal, Vietnã, Quênia e Equador. No Brasil, além da carta de intenções assinada com o Acre, há discussões com Pará e Mato Grosso.
“Dada a relevância da Amazônia, a maior floresta tropical do planeta, estamos otimistas que grande parcela da demanda seja direcionada ao Brasil”, diz Juliana Santiago, que durante muitos anos foi a responsável pelo Fundo Amazônia e é hoje vice-presidente executiva da Leaf.
Os sistemas jurisdicionais não são exatamente novos. O próprio Acre participou de um programa batizado de REM (REDD+ for Early Movers), financiado pelos governos alemão e britânico.
No REM, o modelo era o chamado “pagamento por resultados”, ou seja, os créditos comprados pelos países doadores são retirados de circulação imediatamente. O Fundo Amazônia funciona da mesma maneira.
Já no modelo da Leaf, a ideia é que a empresa compradora possa guardar os créditos para utilizá-los mais adiante ou até mesmo revendê-los no mercado secundário.
Com a expansão desses sistemas que cobrem jurisdições inteiras, espera-se que os créditos gerados em projetos isolados se adequem às linhas de base regionais.
Isso vai representar uma chancela importante em termos de credibilidade, pois nas metodologias em uso hoje cada iniciativa tem a liberdade de definir a ameaça de desmatamento em sua área de atuação – o que abre a brecha para que a geração de créditos seja superestimada.
A expectativa é que vários modelos de financiamento – créditos de projetos, sistemas jurisdicionais, mecanismos como o Fundo Amazônia e até mesmo a ideia de instrumento financeiro apresentado pelo Brasil na COP28 – coexistam para viabilizar a preservação das florestas tropicais, afirma Bloomgarden.
O essencial é garantir a contribuição do setor privado, diz ele. “O dinheiro de doadores não será suficiente para resolver esse problema.”