As lições da China sobre finanças sustentáveis

Ma Jun, ex-economista-chefe do BC chinês, fala sobre a importância da taxonomia verde e da capacitação de pessoas

Ma Jun, ex-economista-chefe do Banco Central da China e especialista em finanças climáticas
A A
A A

O currículo do economista Ma Jun é extenso e imponente. Depois de passagens pelo Banco Mundial e pelo FMI, em Washington, ele voltou para Pequim, onde foi economista-chefe do Deutsche Bank no país e depois economista-chefe do Banco Popular da China, o BC chinês.

Foi na autoridade monetária que ele começou a se envolver com as finanças do clima. Ma elaborou a primeira taxonomia para títulos verdes do país.

A palavra está entrando no vocabulário das finanças mundiais, especialmente as voltadas para o clima. A taxonomia estabelece os critérios que um projeto deve atender para receber um carimbo verde – e, com ele, ter acesso a certas fontes de recursos.

O Brasil está trabalhando num sistema de classificação do tipo. A China foi a pioneira em um sistema nacional, seguida pela União Europeia. Hoje, 70 países já têm a sua ou estão em vias de adotá-la.

Na China, tudo começou com um problema ambiental: a poluição do ar. Sem os US$ 600 bilhões necessários para remediar o problema, o governo do país desenhou o sistema para mobilizar dinheiro privado.

“Hoje, temos o maior mercado de empréstimos verdes do mundo. São cerca de US$ 4,5 trilhões.”

Esses instrumentos ajudaram o país a dominar – com folga – indústrias essenciais como painéis solares, baterias e carros elétricos.

O foco das preocupações de Ma mudou um pouco. Ele atua há alguns anos com um lado que recebe pouca atenção quando se fala em financiar a transição para a economia sem carbono: onde estão as pessoas?

Sem capacitação em larga escala, não se criam projetos críveis e financiáveis, afirma Ma. “Não se trata de simplesmente dizer: ‘Ei, precisamos de trilhões de dólares todos os anos para mercados em desenvolvimento’”.

Ele é o líder da Capacity Building Alliance of Sustainable Investment (Casi), uma entidade independente que conta com mais de 50 organizações parceiras, incluindo o CDP, Fórum Econômico Mundial e o brasileiro Instituto Clima e Sociedade.

A Casi, lançada oficialmente na COP28, em dezembro passado, é a extensão de um trabalho que Ma realizava havia cinco anos em outra ONG, oInstituto de Finanças e Sustentabilidade. O objetivo da Casi é treinar 100 mil pessoas em todo o mundo até 2030.

Ma esteve em São Paulo na semana passada, onde participou do primeiro evento presencial da entidade.

Ele falou ao Reset sobre a meta de treinar 100 mil pessoas em todo o mundo até 2030 e sobre o que o Brasil pode aprender com a experiência chinesa. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

A importância da taxonomia verde

Na Europa houve um debate sobre a necessidade de um instrumento desses. Muitos diziam que o mercado determinaria se um projeto é verde ou não.

Mas eles se convenceram de que a taxonomia pode ser uma ferramenta para reduzir o custo de busca por projetos verdes. É mais fácil e mais barato consultar uma tabela do que encontrar verificadores terceirizados que cobram meio milhão de dólares para colocar um selo no projeto.

A primeira taxonomia chinesa foi elaborada há 11 anos, para investimentos sustentáveis. E liderei outra, para títulos verdes, em 2015.

As lições chinesas

A primeira taxonomia que fizemos na China tinha só uma página, o que gerou problemas na hora da implementação. Havia uma menção a agricultura verde. Mas o que isso significa exatamente? Hoje temos uma versão atualizada.

A taxonomia europeia tem 600 páginas, com muitas condições e salvaguardas. Muitas ONGs que participaram do processo incluíram seus ângulos particulares do que é um projeto verde. Acho que isso cria outro tipo de custo adicional.

Então, para economias emergentes e países em desenvolvimento é importante buscar um equilíbrio entre ser vago ou específico demais. Não podemos criar mais obstáculos para o capital privado, ao mesmo tempo que não podemos abrir flancos para o greenwashing.

As finanças climáticas na China

O catalisador foi a poluição do ar. Dez anos atrás, todos nós tínhamos que usar máscaras. Lidar com o problema custaria muito dinheiro, cerca de 4 trilhões de RMB (cerca de US$ 600 bilhões).

A conclusão foi que o mercado financeiro tinha que ajudar, porque o governo só poderia arcar com 10% do dinheiro. Esse foi o ponto de partida do sistema financeiro verde chinês.

Liderei a redação daquela primeira política, em 2015. Hoje temos o maior mercado de empréstimos verdes do mundo. São 30 milhões de RMB, ou cerca de US$ 4,5 trilhões.

Esses instrumentos sustentaram a maior indústria de energia verde do mundo. Temos a maior capacidade gerada por renováveis, a maior indústria de carros elétricos, somos o maior fabricante de baterias.

O foco inicial foi o problema da poluição, mas de cinco anos para cá o número de projetos relacionados ao clima aumentou muito e hoje são cerca de dois terços do total.

Convergência global

A taxonomia chinesa funciona bem para investidores domésticos. O mesmo vale para a União Europeia e o capital europeu. Mas e se começarmos a vender nossos produtos financeiros um para o outro?

Para evitar a necessidade de verificação nas duas pontas, criamos um grupo para criar uma espécie de taxonomia comum entre China e UE. Ela deve refletir os pontos das duas taxonomias que se sobrepõem.

Logo integraremos também a de Cingapura. Talvez quando a do Brasil estiver pronta possa entrar no grupo.

Imagine por exemplo uma empresa brasileira emitindo um título verde que pode ser vendido na China, na Europa e em Cingapura. Ela poderia usar essa taxonomia de consenso. Isso vai aumentar o fluxo de capital verde entre fronteiras.

Acessando o dinheiro chinês

Temos um tipo de título que pode ser acessado por [empresas ou nações] estrangeiros, chamado Panda Bonds. Para uma companhia com boa classificação de crédito, os juros são de 2,5% ao ano, contra algo como 5% em dólar, hoje.

Mesmo incluindo proteção contra variações cambiais, ainda é mais barato obter dinheiro na China. O volume e o interesse por esses bonds tem aumentado muito.

Algumas empresas brasileiras estão preparando emissões, mas não posso mencionar os nomes.

Também temos fundos de private equity, como o fundo da Rota da Seda e o fundo China-Brasil, que podem investir em projetos sustentáveis.

Aumentando os fluxos de recursos

Existem muitas maneiras de reduzir os custos de financiamento para projetos sustentáveis, como no agronegócio, que é um setor chave para o Brasil.

A China importa muita soja e carne, e esperamos que sejam cada vez mais sustentáveis e livres de desmatamento. Com um sistema de rotulagem, os compradores poderiam por exemplo conseguir financiamentos mais baratos.

Os bancos multilaterais de desenvolvimento também têm papel importante, ajudando a mobilizar dinheiro privado.

E o mercado voluntário de carbono também é importante. Além dos créditos gerados hoje, podemos descarbonizar atividades, o que abre a possibilidade de qualificá-las para a emissão de créditos.

O papel da regulação

Há um grande debate internacional sobre a necessidade de mais regulamentação para incentivar investimentos climáticos. Uma década atrás, muitos países, especialmente os da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), diziam que o mercado decidiria.

Mas tem havido uma convergência no sentido oposto. Precisamos de regras unificadas para reportes, por exemplo. Também precisamos de taxonomias lideradas pelo governo.

Dez anos atrás, apenas a China tinha a sua. Todas as outras eram privadas, como a da Climate Bonds Initiative (CBI). Hoje são mais de 70 países com suas próprias taxonomias adotadas ou em processo de adoção.

Do lado da divulgação, o padrão ISSB tende a se tornar obrigatório. Leva algum tempo, pois há muita resistência das empresas. Em geral isso é resultado de uma má compreensão.

Na China, fazer o relatório ISSB custa cerca de US$ 100 mil. Não é tão caro, e esse custo vai diminuir com a tecnologia digital, que vai automatizar muita coisa.

Além do dinheiro

O Casi é uma plataforma global de capacitação de pessoas. Em 2016, a China presidiu o G20 e elegeu o tema das finanças verdes como uma das prioridades.

Esse trabalho continua, e existe um consenso. Em muitos países, especialmente mercados emergentes e economias em desenvolvimento, a falta de capacidade é um grande obstáculo.

Não se trata de simplesmente dizer: “Ei, precisamos de trilhões de dólares todos os anos para mercados em desenvolvimento”.

O Casi é uma resposta a esse chamado. Ele nasceu de um trabalho que fizemos há cinco anos na China, no Instituto de Finanças e Sustentabilidade. Treinamos 4.500 pessoas, em 70 países.

É uma entidade independente e não está ligada a nenhum governo. Nossa sede é em Pequim, mas somos uma rede internacional de 50 organizações.

São provedores de conhecimento prático na operação de sistemas de finanças, em termos de produtos, padrões, normas de divulgação e assim por diante.

Fizemos nosso primeiro evento presencial em São Paulo, e teremos outros dois este ano, na Ásia e na África. Também vamos lançar um programa de ensino online. A meta é treinar 100 mil pessoas até 2030.