Basta andar por supermercados para encontrar bebidas feitas com guaraná e barrinhas de cereal com castanha-do-pará. No corredor ao lado, estão cremes para mãos à base de tucumã e hidratantes com açaí.
Mais discretos, sem estampar as embalagens, vários outros ingredientes fornecidos pelas florestas brasileiras também estão nas prateleiras de farmácias. O jaborandi é usado em colírios para tratar glaucoma, e uma proteína do veneno da jararaca brasileira está presente no captopril, um medicamento para tratar hipertensão arterial.
A natureza é o ponto de partida para inovações que criaram e sustentam diferentes indústrias, como a farmacêutica, a de cosméticos ou a agrícola. Mas, uma vez que a biodiversidade entra para o fluxo de trilhões de dólares por ano movimentados ao redor do mundo, resta a dúvida: quem deve pagar por esse uso, e como? E quem deve receber por ele?
O sistema de pagamentos em vigor hoje, baseado no acesso físico aos bens da biodiversidade – o fruto do guaraná ou a folha do jaborandi – foi ultrapassado pela tecnologia. Parte das pesquisas que dão origem a novos insumos ou produtos são feitas hoje com sequências genéticas, representações digitais de organismos vivos armazenadas em bancos de dados, muito longe da Amazônia brasileira ou de outros hotspots globais de diversidade biológica.
Definir as regras para esse novo mundo das Informações de Sequências Digitais (DSI, na sigla em inglês) será um dos principais desafios da COP16, que começa na próxima segunda-feira, 21, em Cali.
Negociadores de mais de 190 países estarão reunidos na Colômbia para tratar de um tema espinhoso, que opõe os interesses dos países industrializados e os do Sul Global. O assunto é particularmente importante para o Brasil – dono da mais alta concentração de biodiversidade do mundo e potencialmente um dos países que mais tem a ganhar com um mecanismo global de remuneração.
Reiniciando o sistema
Hoje, os acertos entre “fornecedores e usuários” da biodiversidade são regidos pelo Protocolo de Nagoia, firmado em 2010 no Japão. Mas, especialmente na última década, o avanço da digitalização e o barateamento das tecnologias de sequenciamento genético vêm revolucionando as pesquisas.
Transformadas em códigos digitais e armazenadas em bancos de dados em diferentes lugares do mundo, DNA, RNA e proteínas compõem o que se costuma chamar de DSI no jargão das COPs da biodiversidade.
Em vez de pegar um voo para o interior do Congo ou para as florestas úmidas de Papua Nova-Guiné, pesquisadores e companhias ao redor do globo com uma conexão de internet têm acesso a informações de diferentes materiais mesmo sem ter uma amostra física de determinado produto.
Mais que isso: milhares de testes e combinações são feitos digitalmente – usando o enorme poder de computação de data centers – em uma fração do tempo. Simulações e modelagens aceleram o desenvolvimento de remédios e vacinas, e são um salto para a inovação.
Por outro lado, esse avanço trouxe um novo problema. O uso de DSI não estava previsto no Protocolo de Nagoia nem em outra frente da Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD, na sigla em inglês).
Ou seja, quem desenvolve um produto à base de algo real, mas acessado em sua essência digitalizada, pode driblar a obrigação de remunerar os países de onde vieram as fontes originais da informação.
Foi somente na COP15, há dois anos em Montreal, que os países concordaram que “os benefícios gerados pela utilização de informações de sequências digitais sobre recursos genéticos devem ser partilhados de forma justa e equitativa”.
O que leva à próxima pergunta: como esse compartilhamento será feito?
Fundo da biodiversidade
No linguajar das negociações, esse repasse de recursos se chama repartição de benefícios. Ela pode se dar de duas maneiras: não-monetária, com o desenvolvimento de projetos de conservação ou transferência de tecnologias, ou monetária, com o pagamento em dinheiro.
Também na COP15, os países concordaram com a criação de um mecanismo multilateral para administrar esses recursos, incluindo um fundo global onde serão feitos os depósitos.
“Estamos saindo de um sistema bilateral para esse sistema multilateral de repartição de benefícios. O racional é que, em vez de bater de porta em porta em cada país de origem, os países que usam essas sequências genéticas façam depósitos nesse fundo”, diz Luiz Marinello, advogado especializado em propriedade intelectual e sócio do Marinello Advogados. “Na outra ponta, o fundo ficaria responsável por decidir como esse valor seria revertido para a proteção e restauração da biodiversidade.”
Este é o desafio para os negociadores na COP16. Os países terão que debater como se dará a operacionalização desse mecanismo e definir, por exemplo, se os usuários das sequências digitais “serão incentivados” ou “terão que” dividir os benefícios de maneira justa.
“Esse tema é a bola da vez da CBD”, diz Rodrigo Lima, diretor da consultoria Agroicone, que acompanha o tema desde 2006. “Da forma como o mecanismo foi aprovado na COP15, amplia-se a potencial base de atores que deverão repartir benefícios, pois não se exige mais o vínculo do país de origem dos recursos genéticos, que neste caso deram origem às sequências.”
As negociações
As propostas na mesa ainda estão muito distantes – e cada uma é acompanhada por uma série de dúvidas.
No que diz respeito a quem deve colocar o dinheiro no fundo, uma delas prevê que as contribuições sejam uma porcentagem do faturamento ou receita dos produtos “que tenham se beneficiado” pelo uso de DSI. Outra engloba somente empresas dos setores considerados altamente dependentes do uso de informações de sequências genéticas, como o farmacêutico.
Uma terceira – a mais agressiva, proposta por países africanos – fala em uma contribuição para o fundo equivalente a 1% de toda a receita gerada por uma empresa que use DSI em qualquer um de seus produtos. E a última determina a contribuição como parte da receita gerada pela venda de produtos “que usam ativamente” as informações digitais.
Como serão definidos os setores que mais usam DSI? De que maneira os Estados conseguirão engajar empresas na contribuição para o fundo? Quais bancos de dados serão usados como referência? São questões para as quais ainda não há respostas.
Já na distribuição de recursos, há duas opções principais. Uma delas sugere uma divisão com base em projetos apresentados pelos países ao fundo. Outra defende o repasse direto para os países.
Se a segunda for aprovada, por exemplo, uma alternativa para o Brasil seria conectar seu Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB) ao fundo multilateral, e então dividir os recursos com comunidades indígenas, quilombolas e pequenos agricultores que atuam como guardiães da floresta. O país sairia na frente por já ter uma legislação bem estabelecida, diferente do que ocorre em diversos outros países.
Mas a missão principal da delegação brasileira é garantir que o país receberá a maior quantia de dinheiro possível. Os diplomatas vão argumentar que, quanto maior a dificuldade para a conservação de seu patrimônio natural, maior deveria ser a parcela de recursos recebida.
Um passo atrás
Antes que determinações como essas sejam feitas, entretanto, será preciso definir os conceitos envolvidos no tema, diz Lima. “O mecanismo trata do uso da sequência genética digital, mas ainda não há o conceito de uso, de usuário ou de acesso, por exemplo.”
A observação encontra eco na fala de Priscila Matta, gerente sênior de sustentabilidade da Natura para América Latina. Ela pontua que “é preciso garantir que todo mundo está falando a mesma língua, que há harmonização dos conceitos”.
Matta também ressalta a importância de uma visão integrada dos vários instrumentos ligados à CDB para que se contribua com o uso sustentável da biodiversidade, um dos pilares da convenção.
“Entendemos que será preciso trazer regras mais simplificadas. É importante que não haja um empilhamento de pagamentos de repartição de benefícios [por parte das empresas], uma vez que você tem legislações nacionais, o Protocolo de Nagoia e, em breve, o mecanismo multilateral.”
Os negociadores devem dedicar boas horas ao longo das duas semanas da Conferência para debater cada uma das palavras que entrarão no documento final.
Uma vez desenhado o fundo, a batalha seguinte deve ser a decisão de quem será responsável por gerir o veículo.