Cali, Colômbia — Depois de duas semanas de negociações, a COP16 da Biodiversidade terminou sem um fim. Após quase dez horas na plenária final, a última martelada da presidente da conferência e ministra do meio ambiente da Colômbia, Susana Muhamad, foi pela suspensão da sessão que definiria como será implementado o ‘Acordo de Paris da natureza’.
Algumas decisões foram adotadas – como as vitórias históricas pela representação de povos ‘guardiões da biodiversidade’ –, mas os pontos que não tiveram consenso entre os quase 200 países serão debatidos em outro momento. Onde e quando ninguém tem certeza, por enquanto.
Um dos assuntos mais esperados para discussão na COP16 era como alcançar US$ 200 bilhões por ano para que se cumpram as metas de conservação e preservação até 2030, estabelecidas pelo Marco Global da Biodiversidade, firmado na COP15 de Montreal.
Economias desenvolvidas se comprometeram com o repasse de 10% desse valor a partir do ano que vem, mas, por enquanto, mobilizaram pouco mais de US$ 400 milhões ao longo dos últimos dois anos.
As negociações da sessão encerrada na manhã deste sábado degringolaram quando delegações europeias, como a União Europeia e a Noruega, que são doadoras do fundo global para biodiversidade, bloquearam o que virou um pacote de texto sobre mobilização de recursos, uso comercial de sequências genéticas digitais e monitoramento do progresso feito pelos países em relação às 23 metas.
Decisões fundamentais para que se avance nesses objetivos sequer chegaram à plenária.
A certo ponto da manhã, a diretora do departamento ambiental do Itamaraty, Maria Angélica Ikeda, disparou: “Minha delegação não está pronta para discutir qualquer outra coisa até que essa questão seja resolvida”. A diplomata criticou a falta de disposição das nações em negociar pontos específicos do texto.
O Brasil pede para que seja criado um novo fundo para a biodiversidade. Hoje, esse veículo fica abaixo do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, na sigla em inglês), uma estrutura do Banco Mundial, e lida com a baixa representatividade de economias em desenvolvimento – que concentram a maior parte da biodiversidade do planeta.
O Brasil, a Colômbia e o Equador, juntos, têm um único voto na governança do GEF, enquanto os Estados Unidos, que não são signatários da Convenção de Diversidade Biológica (CDB), têm mais influência em como esse dinheiro será usado.
A reivindicação do governo brasileiro por uma reforma dos mecanismos multilaterais transcende as discussões sobre biodiversidade.
“Nós lidamos com várias críticas quando, por exemplo, temos incêndios florestais. Vários países desenvolvidos têm incêndios florestais todos os anos, e todo mundo sente muito por eles e eu também sinto por eles”, disse Ikeda.
“Mas quando nós temos incêndios e desmatamentos, é nossa culpa. Somos nós que não temos policiamento suficiente. É porque nós estamos errados. Somos julgados o tempo todo, e por um nível de implementação com que nós não temos como arcar.”
Desde sexta-feira, data oficial do encerramento da COP16, já se especulava pelos corredores sobre a possibilidade de prorrogação da conferência. Hoje, depois das 8h, com diplomatas e a ministra Muhamad visivelmente exaustos, a falta de quórum levou à suspensão da sessão. A contagem dos presentes foi solicitada pelo último diplomata do Panamá na sala já esvaziada, enquanto delegações de outros países deixaram a sessão por conta de seus voos.
Sem um documento final da COP16, mesmo o orçamento do secretariado da CDB, que vai até a virada do ano, não foi aprovado oficialmente – o que significa que uma COP extraordinária ou a retomada da COP16 precisaria acontecer até o fim deste ano, afirma uma fonte experiente nas negociações.
Os palpites, por ora, são da continuação em uma reunião em Bangkok, na Tailândia.
Lucros sobre DNA da natureza
Antes mesmo de chegar a Cali, já se sabia que as negociações para o cumprimento da repartição de lucros ou receitas obtidas por empresas a partir do uso comercial de informações de sequências digitais seria um campo de embates e discordâncias.
Abreviado para DSI, em inglês, o tema é extremamente técnico e coloca em pontas opostas, por exemplo, as demandas do Japão e Suíça, países ricos com grandes laboratórios farmacêuticos, e do Brasil e Colômbia, com economias em desenvolvimento e biodiversidade exuberante.
Foi firmado um avanço importante com a criação do Fundo Cali, um mecanismo multilateral que vai receber os pagamentos e cuja metade do desembolso será direcionado para populações indígenas e comunidades locais pelos seus serviços de conservação e compartilhamento de saberes tradicionais.
Fora isso, restam muitas dúvidas e incertezas, e algumas esperanças, do ponto de vista das ambições do Brasil – que, independentemente dos critérios ainda a serem definidos, deve ser um dos principais beneficiários.
“Acreditamos que a criação desse mecanismo será, na verdade, um salto de fé, e deve ser um salto de fé coletivo. É para funcionar. Se não funcionar coletivamente, isso falhará, e nós falharemos conosco mesmos, e trairemos as ambições com as quais todos concordamos”, disse Gustavo Pacheco, chefe da delegação diplomática brasileira.
Na plenária, o diplomata relembrou a razão para a discussão de DSI. “Eu gostaria de relembrar as palavras do Secretário-Geral [das Nações Unidas, António] Guterres na abertura desta reunião, quando ele mencionou por que estamos tendo essa conversa: os países em desenvolvimento estão sendo saqueados enquanto as descobertas científicas e o crescimento econômico derivado de suas riquezas extraordinárias estão beneficiando outros.”
Suspensão e suspense
A COP16 ainda não acabou e, apesar da frustração generalizada pelo atraso de decisões essenciais para que se contenha a degradação da biodiversidade do planeta e se faça a restauração até 2030, foram feitos avanços. “Fracasso” não é a palavra de ordem.
A sessão começou em clima de festa, com a aprovação de um órgão subsidiário na CDB que vai garantir a participação permanente de indígenas e comunidades locais em diferentes esferas da convenção, e o reconhecimento da importância do conhecimento tradicional de afrodescendentes para a preservação da natureza – no Brasil, esses são os quilombolas.
Ambos os acordos foram considerados vitórias históricas e comemoradas avidamente, especialmente pelo Brasil e a Colômbia, que lideraram essas negociações.
O primeiro grande consenso da reunião foi a revisão das Áreas Marinhas Ecologicamente Significativas (EBSAs, sigla em inglês), após oito anos de negociação. Novas áreas do oceano poderão ser classificadas como EBSAS, que exigem uma proteção mais elevada, e inseridas na meta “30×30” – que trata da preservação de ao menos 30% de áreas marinhas e terrestres até 2030.
A COP16 foi a maior conferência de biodiversidade até hoje, com a reunião de mais de 20 mil pessoas, com mais de 115 ministros e de 170 delegações oficiais. “Essa foi uma COP histórica, e a Colômbia cumpriu com os objetivos que se propôs”, disse a ministra Muhamad.