Quando você pegar esse livro, pode se confundir, e achar que não é livro. Folheando sem compromisso vai pensar que se trata de um caderno de anotações ao se deparar com pequenos textos, desenhos, rabiscos, mapas, rasuras, muitos espaços em branco — um emaranhado de elementos gráficos.
Diário das Águas, de Gabriela Romeu e Kammal João, publicado em 2022 pela Peirópolis, é assim. Como um rio, que é um emaranhado de vidas e de histórias que correm por suas beiradas e no seu leito ao longo de muito tempo, esse livro é um baú com todas elas e, ainda, sentimentos, curiosidades e inspirações de uma grande viagem por muitos rios do Brasil. É o registro de uma escuta atenta e sensível das infâncias que acontecem à beira d’água.
Nasceu de 20 anos de navegação da autora, primeiro como jornalista, fazendo grandes reportagens e, depois, como artista-pesquisadora, por muitos rios do Brasil. É resultado do que ela viu e ouviu nas margens e sobre as águas dos rios Amazonas, Madeira, Tapajós, Oiapoque, Paraguai, Xingú, Marimbus e São Francisco.
A obra é também parte de muitos diários de bordo, produzidos ao longo de mais de dez anos do Projeto Infâncias, que pesquisa, registra e mostra para os muitos Brasis — por meio de múltiplas plataformas — como vivem crianças de diferentes contextos socioculturais, indo muito além dos grandes centros urbanos.
Gabriela Romeu, que também é documentarista e produtora cultural, criou o Infâncias com a colega de profissão Marlene Peret, especializada em terceiro setor e empreendedorismo social, para sensibilizar os adultos sobre as muitas infâncias possíveis e enfatizar o conhecimento inato dessas crianças. Por isso a importância de documentar o cotidiano e o imaginário delas em todo o país — urbanas, ribeirinhas, quilombolas, indígenas, entre tantas outras.
O estudo aprofundado da cultura e do comportamento social desse segmento da população brasileira que vive na e da beira do rio permite que se reflita sobre os saberes, os fazeres e as inúmeras maneiras de se viver longe de cidades enormes.
“Por meio desse trabalho, se afirma a importância dos territórios. E no livro, falo sobre o que é essencial sem excesso, como a natureza, as comunidades tradicionais e os povos originários. Uma abundância, da qual devemos cuidar”, sintetiza Romeu.
Os conteúdos de pesquisa do projeto são disseminados por meio de produções audiovisuais, publicações, artigos, exposições, palestras, oficinas e materiais de mediação.
Três viagens
Diário das Águas é fruto de três viagens. A primeira é a imersão literal, da autora, no reino das águas para fazer um livro sobre o tempo — não à toa ele se chama diário.
A segunda foi deixar-se transportar pela escrita, de maneira leve, assim como em “um casquinho, a canoa cavada no tronco da árvore, que se movimenta apenas com a força do motor dos braços”, compara Romeu.
O resultado é um livro composto por fragmentos em primeira pessoa, narração de “causos” ouvidos e vividos, pequenas poesias, receitas e frases profundas, proferidas por quem mora na beira do rio e tem a sabedoria do tempo nas veias. Nada linear. Afinal, os rios fazem curvas e têm muitos desvios.
“O caderno é o primeiro inventário da pesquisadora e da viajante. A partir do que é colhido na visita a campo e do viés documental, nasce uma investigação artística, de linguagem, que vai produzir o ficcional”, explica.
A terceira viagem foi a do processo editorial. A começar pela organização da equipe de tripulantes que transformaria esse testemunho em livro para crianças de qualquer idade.
O resultado é um caderno sem pautas, em forma de diário, com datas que percorrem um ano inteiro. Conta como é o cotidiano e o brincar da criança que vive na beira do rio, a partir do contato direto e da imersão em seu ambiente e, por que não, também em seu imaginário.
Entre o documental e o onírico
O livro começa em um 1º de janeiro, quando a narradora descreve, de forma poética, sua primeira vez no rio Amazonas. Daí em diante, os dias e os meses correm em paralelo ao ciclo das águas — cheia, temporais, seca. E vão apresentando ao leitor das selvas de pedra um mundo à parte.
Há uma coleção de verbetes pouco familiares para quem vive no asfalto, com definições simples e bem-humoradas (coletadas das falas das crianças), ao lado de desenhos feitos com aquarela e lápis oleoso. Nomes de peixes e de bichos da água, de apetrechos de pesca, de coisas que rodeiam um rio… e, para quem não ficar satisfeito, tem até um glossário no final.
Mostra também o movimento da vida que acompanha o ritmo das águas e da natureza. Rituais, hábitos e costumes, rotinas, brincadeiras, crenças, transporte, alimentação, migrações, com mapas e calendários.
Não falta filosofia e poesia: “O povo das águas me ensinou que a vida é sempre recomeço.” E superstições, só para o caso de você encontrar o boto.
As imagens de Kammal João passeiam entre o documental e o onírico, e com muita leveza trazem por vezes apenas manchas de cor e espaços em branco, buscando acompanhar a linguagem poética com um ritmo próprio.
No final da edição, há um QR Code. Ao mirar nele com a câmera do celular, surge um link na tela que leva o leitor a um álbum de viagem. Uma página da editora mostra parte da documentação: fotos de beiradas, colheitas e embarcações, e vídeos com os sons e as vozes das crianças dos lugares visitados, em meio às suas brincadeiras.
Há também textos complementares da autora, com detalhes de seus encontros e das histórias ouvidas, contadas e vividas.
Gabriela conta que o livro deu origem a uma exposição, da qual é curadora, que abre no dia 2 de setembro, em Canoas, na região de Porto Alegre (RS). Fabulários — suas gentes, memórias, plantas, bichos e outros seres foi idealizada pela Trilha Cultural, com incentivo da Lei Rouanet, e inspirada no mundo fantástico que existe em torno dos rios.