No enredo da saga para manter a floresta amazônica em pé, o papel da Zona Franca de Manaus é carregado de ambiguidade.
Há quem defenda que a presença da indústria evitou um desmatamento que teria sido muito maior ao aliviar a pressão da mineração e do agronegócio. E aqueles que não se cansam de dizer que as empresas estabelecidas no polo manauara, que custam quase R$ 30 bilhões ao ano em renúncia fiscal, extraem seus lucros de costas para a floresta.
Uma iniciativa criada em 2018 e que começou a funcionar para valer no ano passado tenta pacificar essa narrativa e usar recursos das indústrias para incentivar a bioeconomia.
Entre o fim de 2019 e começo de 2020, seis indústrias instaladas no polo de Manaus destinaram R$ 9,5 milhões para projetos de pesquisa e inovação ligados à bioeconomia da Amazônia. Entre elas, Foxconn, Samsung e Flex.
Não se trata de distribuição de benesses.
Na verdade, para ter direito aos benefícios previstos pela Lei de Informática, as empresas instaladas na Zona Franca são obrigadas a destinar ao menos 5% do seu faturamento a pesquisa e desenvolvimento. Algo da ordem de R$ 700 milhões por ano.
Mas o que deveria servir como contrapartida para desenvolver a região amazônica, historicamente sempre foi aplicado em projetos de inovação dentro das próprias fábricas, para melhorar processos e produtos.
Diante da cobrança por mais pesquisa de interesse público, a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) criou cinco programas prioritários em que as empresas da ZFM podem investir em projetos e negócios com a curadoria de terceiros.
Um deles é o PPBioeconomia, voltado para pesquisa e inovação para uma economia baseada no uso dos recursos da floresta de forma sustentável.
À frente da coordenação do PPBio depois de vencer um edital, o Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam) passou a bater na porta das indústrias do polo para convencê-las de que a pesquisa em bioeconomia poderia ser um bom negócio.
Segundo Carlos Gabriel Koury, diretor técnico do Idesam e coordenador do PPBio, a meta para 2021 é levantar mais R$ 10 milhões para novos projetos. Com base no faturamento do ano anterior, as empresas têm até março para destinar os recursos — e costumam deixar a decisão para a última hora.
As cifras são pequenas perto do volume total disponível para P&D, mas são um alento para iniciativas que muitas vezes morrem à míngua de recursos. Ou nem chegar a nascer.
“Muito se fala hoje sobre a ambição grande de se criar novas indústrias para ajudar a manter a floresta em pé, como de pescados manejados pelas comunidades locais ou de cosméticos com bio ingredientes. Mas sem investimento em pesquisa e inovação, não vai acontecer”, diz Mariano Cenamo, fundador e diretor de novos negócios do Idesam. “E para formar uma base, precisa ter investimento público ou privado incentivado.”
Na prática, o que o PPBio faz é justamente incentivar as empresas a investir em soluções para a utilização econômica sustentável da biodiversidade sem correr riscos dentro de casa. E num modelo flexível, em que cabem várias combinações tanto de áreas de inovação quanto de formas de parcerias.
Iluminando o breu
A GBR Componentes, fabricante terceirizada de televisores, celulares, modens e maquininhas de cartões, decidiu partir para algo completamente diferente da sua área de atuação.
Destinou até agora R$ 750 mil para a startup Biozer, que desenvolve cosméticos, medicamentos fitoterápicos e suplementos alimentares aliando tecnologia a ingredientes de base florestal amazônica.
A decisão teve forte influência da economista Rebecca Garcia, da família controladora da GBR e uma entusiasta do PPBio. “O mercado consumidor no mundo está caminhando para produtos que visam a sustentabilidade. E, muito embora as políticas nacionais não estejam nessa direção, a gente vive o momento perfeito”, diz ela.
Com os recursos, de uma startup que se dedicava apenas a pesquisa e desenvolvimento, a Biozer se transformou numa empresa voltada a colocar produtos acabados no mercado e com o lançamento de uma linha de skin care com a marca Simbioze Amazônica.
Foram criados até agora cinco produtos, com ingredientes como extrato de açaí, óleo de copaíba e breu branco, para limpeza, esfoliação e tonificação da pele. Logo começarão a ser desenvolvidos hidratantes faciais, com mais recursos da GBR, completando a linha.
“Mostramos que era possível fazer um produto com qualidade, com rastreabilidade e transparência e fazendo um desenvolvimento lá dentro da comunidade, com valor agregado”, diz o biólogo com mestrado em biotecnologia Danniel Pinheiro, CEO da Biozer.
O impacto no desenvolvimento da economia da floresta pode ser medido quando se desce pela cadeia de fornecimento da fabricante de cosméticos. Graças a um trabalho de catalogação das árvores e georreferenciamento das áreas de extrativismo, quando a Biozer faz uma compra, um QR Code permite rastrear o lote daquele produto e a região de onde foi extraído — e se a área está sendo preservada.
Pagar o preço justo pelos insumos também faz parte da equação.
Uma das comunidades era acostumada a vender a resina bruta da árvore de breu branco a R$ 50 a saca ( R$ 1 o quilo). A Biozer e o Idesam conseguiram implementar o beneficiamento do breu, com a fabricação do óleo essencial na própria comunidade e, na compra dos três primeiros lotes, foram pagos entre R$ 1500 a R$ 1800 o quilo. “Todo esse valor agregado agora fica dentro da comunidade”, diz Pinheiro.
No caso da GBR, a empresa acertou uma participação nos resultados das vendas dos produtos desenvolvidos pela Biozer. Além disso, Garcia diz que o grupo encara o movimento como uma porta para a diversificação. “É uma oportunidade de estudar um novo mercado que deve se tornar forte num futuro bem próximo.”
Apagando incêndios
Em uma frente completamente diferente, a fabricante de eletroportáteis Mondial aceitou investir em uma solução que ajudasse a combater os incêndios florestais.
O Idesam bateu à porta de Jair Maia, professor da Universidade do Amazonas e doutor no tema, que sugeriu a criação de uma mini estação meteorológica, capaz de fornecer aos brigadistas informações valiosas para a tomada instantânea de decisão, com base na temperatura, velocidade e umidade do ar. O equipamento pode ser carregado em mãos ou acoplado a um drone.
Os cálculos são de que o produto poderá chegar ao mercado custando R$ 1 mil a unidade, já computado o lucro. Em alguns marketplaces, similares importados chegam a custar R$ 17 mil. “O grande desafio é a nacionalização da tecnologia”, diz Maia.
Além das informações transmitidas em tempo real aos brigadistas, que podem ser lidas por meio de um aplicativo de celular, os dados posteriormente são transferidos para a nuvem, formando uma base para consulta e análise. “Isso ajudará a mapear os padrões dos incêndios e ajudará no planejamento e nas tomadas de decisões futuras.”
Atendendo a uma demanda de potenciais interessados, numa próxima fase os pesquisadores adaptarão a engenhoca para uso no no agronegócio, para monitoramento fino das condições climáticas das lavouras.
Até agora, o projeto recebeu R$ 62 mil.
Os quatro bolsistas envolvidos na pesquisa — mestres, doutores e especialistas nas áreas de meteorologia, engenharia de sistemas, de software e de hardware — recebem uma bolsa de inacreditáveis R$ 1,2 mil por mês. “Todos assumiram o desafio porque se apaixonaram pelo problema”, diz Maia, que abriu mão da própria bolsa para que sobrassem mais recursos para a pesquisa.
Para finalizar o protótipo, contratar um designer industrial e fazer um estudo de mercado, o projeto ainda precisa de R$ 700 mil — dinheiro que até agora Idesam e pesquisadores não sabem se alguma empresa bancará.
No caso da Mondial, o investimento feito até aqui não prevê retorno para a empresa.
Além dos dois exemplos, outros dois projetos já receberam dinheiro: um para criar uma espécie de caviar com ovas de peixes amazônicos, batizado de Pérolas da Amazônia, com recursos da Foxconn; e outro para cultivar tomate de forma sustentável na região, bancado pela fabricante de autopeças Denso. Outros nove estão em fase de elaboração ou aprovação.
Uma epopeia burocrática
Convencer as empresas a destinar parte da verba de P&D ao PPBio não tem sido fácil. O valor captado até agora não chega a 2% do total disponível.
O principal problema é de ordem burocrática. Dentro das regras de aplicação das verbas de P&D da Lei da Informática, há algumas destinações obrigatórias para 2,7% do faturamento das empresas (dos 5% totais) e o PPBio corre por fora.
Para piorar, no fim do ano, uma mudança nas regras obrigou que 0,14% vá para projetos fora da região metropolitana de Manaus, para forçar a interiorização, mas não incluiu o programa como opção. Ou seja, a margem ficou mais estreita.
Uma vez no caixa, também não faltam entraves à aplicação do dinheiro.
O caso da Samsung ilustra a encrenca. A fabricante coreana de smartphones e televisores é a maior investidora em P&D da Zona Franca, respondendo por cerca de 40% dos R$ 700 milhões anuais.
Veio dela até agora a maior fatia destinada ao PPBio, de quase R$ 4 milhões. Mas os recursos transferidos ao Idesam, que deveriam ser destinados para pesquisa na área de tratamento de resíduos, seguem parados.
As pesquisas deveriam ser feitas por bolsistas do Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), criado há quase vinte anos para fomentar a pesquisa na região. Mas o prédio, uma estrutura gigante de 12 mil metros quadrados, sempre operou precariamente devido a entraves burocráticos que impedem o seu pleno funcionamento.
Para a pesquisadora Tatiana Schor, secretária executiva de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado do Amazonas, o PPBio oferece uma chance de guinada no atual modelo da Zona Franca.
“Goste-se ou não, temos 53 anos de polo industrial e a maior parte do PIB do Estado depende dele. Mas hoje a indústria não conversa com a floresta”, diz ela, que defende como alternativas a criação de linhas ‘verdes’ dos produtos que hoje já saem da Zona Franca ou algo ainda mais transformador: uma indústria totalmente nova e conectada com os insumos da floresta, como a biofarmacêutica.
“O PPBio entra nessa tentativa de se sair do comum da Lei de Informática e trazer à tona um universo novo.” Mas para que ganhe escala e mude o jogo para valer precisa se apoiar em uma política industrial verde para a região, que sirva de norte para as decisões empresariais, muitas vezes tomadas por CEOs que estão em outros países.
Algo que, infelizmente, não parece estar no horizonte encoberto pela fumaça das queimadas.