Está começando a sair do papel o projeto liderado pelo climatologista Carlos Nobre, batizado de Amazônia 4.0, que quer instalar minifábricas no coração da floresta para transformar os bioinsumos em produtos de maior valor agregado.
É a grande aposta de Nobre para criar uma bioeconomia, com lógica de mercado, capaz de manter a floresta em pé.
O climatologista se tornou uma espécie de consciência nacional a respeito do risco de que a Amazônia atinja um ponto de não retorno, caminhando para a completa savanização, se o avanço do desmatamento não for detido a tempo. E o Amazônia 4.0, que começou a ser gestado em 2017, é a sua resposta ‘mão na massa’ para o problema.
“Propomos um novo modelo para a floresta, que não seja nem o da conservação estrita e nem o da liberação completa de qualquer atividade, como a pecuária, a mineração e a monocultura de grãos”, diz o biólogo Ismael Nobre, irmão de Carlos e que colidera a iniciativa.
“Os estudos que fizemos mostraram que a razão para existir tão pouca riqueza econômica ligada à floresta é porque nunca houve a agregação de valor. Todos os ciclos de desenvolvimento foram de commodities, como borracha, ouro e até energia elétrica.”
A partir dessa constatação, surgiu a ideia de criar os Laboratórios Criativos da Amazônia (LCAs) para as principais cadeias de insumos produzidos da região.
Trata-se de minifábricas móveis que se deslocarão entre as comunidades e que, como o nome sugere, servirão para treinamento e experimentação. Ou seja, serão o ponto de partida para disseminar o projeto.
A ideia é que, depois de serem capacitadas nos LCAs, cada uma das comunidades se organize para levantar os recursos necessários para instalar sua própria fábrica e estruturar seu negócio a partir dela.
Depois de quatro anos de pesquisas e trabalho, será inaugurado o primeiro LCA, entre o fim de julho e início de agosto, para a cadeia de cacau e cupuaçu.
A inauguração se dará em São José dos Campos, no Parque Tecnológico da Univap, onde as pesquisas têm sido desenvolvidas. A ideia é deixar a minifábrica — com projeto arquitetônico desenvolvido pelo croata naturalizado brasileiro Marko Brajovic — em exposição e fazer os testes e ajustes finais antes de encaminhá-la, de fato, à Amazônia.
Em fevereiro de 2022, o laboratório finalmente começará a circular entre as quatro primeiras comunidades produtoras escolhidas, todas no Estado do Pará e com perfis diferentes, uma de mulheres trabalhadoras rurais, uma de quilombolas, uma de ribeirinhos e outra numa reserva extrativista.
“A Amazônia é o maior produtor de amêndoa de cacau, já à frente da Bahia. Mas a produção é feita no modo commodity, em que o valor aproximado de 1 quilo da amêndoa gira em torno de R$ 10, enquanto o quilo do chocolate fino, de amêndoa fermentada, sai a R$ 200 a R$ 300. É uma agregação de valor de 2000% ou mais”, diz Ismael.
Indústria 4.0 na Amazônia
Quando pensaram em agregar valor aos insumos amazônicos, os irmãos Nobre sabiam que a ideia passaria pela industrialização, algo complexo numa região com condições desfavoráveis de logística, acesso a recursos e insumos.
“Mesmo quando há exemplos de tentativa de agregação de valor, há problemas sérios de qualidade dos produtos, o que não sustenta mercados bons e contínuos”, diz Ismael.
Tiveram, então, a ideia de incorporar tecnologias modernas da chamada indústria 4.0, como computação em nuvem, automação industrial e inteligência artificial, para viabilizar a bioindústria da Amazônia.
“Estudamos todos os passos com experts em chocolate, em engenharia mecânica, eletrônica, mecatrônica e programadores de computador e entendemos como pegar cada passo de um processo complexo e transformar em um passo facilitado pela inteligência de computadores dedicados à cadeia produtiva”, explica Ismael.
Na prática, a cada um dos maquinários usados na fabricação do chocolate foram acoplados pequenos computadores, com softwares especiais e sensores, capazes de cuidar do controle fino do processo.
“Dentro do paradigma da Amazônia 4.0, para a fabricação de chocolate, você interage com uma tela de controle, que é sensível ao toque. E qualquer pequena comunidade da Amazônia que tenha uma área de produção de cacau ou cupuaçu poderá facilmente ter um chocolate de altíssimo nível, fino, fabricado ali mesmo.”
Fazendo jus ao adjetivo ‘criativo’, a plataforma permite adicionar características autorais ao processo, com adição de outros ingredientes da biodiversidade à receita, escolha de pontos de fermentação e de torra e até impressão de formas com design próprio.
Um exemplo concreto de como o conceito é revolucionário para o processo está na definição do ponto de torra das sementes, que é decisivo para o sabor final do chocolate. Hoje, o controle é feito em fornos manuais. “É uma loucura. É cronômetro, prancheta e termômetro na mão”, diz Ismael.
Dentro do LCA, o forno é equipado com sensores de temperatura e um computador, com um programa que controla as resistências elétricas, o que permite desenhar uma curva de torra, com a temperatura variando ao longo do tempo.
“E basta apertar um botão para repetir essa curva que está na memória todas as vezes. Só isso resolve a principal dor de uma fábrica de chocolate que visitei.”
Todo o processo é rastreado de ponta a ponta e os dados são guardados em um banco de dados com tecnologia blockchain, que poderá ficar disponível publicamente através de um código de barras. “Esse fator será importante para a viabilidade desses produtos no mercado internacional, que se torna cada vez mais exigente em relação à origem dos produtos, às cadeias de fornecimento.”
Lógica de mercado
Embora tanta tecnologia de ponta embarcada possa sugerir que o custo de aquisição de equipamentos será alto demais para as comunidades conseguirem bancar, Ismael diz que não é por aí.
O custo de desenvolvimento, que é o mais caro, já foi bancado pelo capital filantrópico que financiou a empreitada até aqui. Com isso, as estimativas apontam que uma mini-fábrica 4.0 terá um custo apenas 10% superior ao de uma planta de mesmo porte sem os recursos tecnológicos.
Foram necessários R$ 5 milhões em capital filantrópico para concretizar o LCA do cacau e cupuaçu. Boa parte veio do BID Lab, o braço de inovação do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
E também contribuíram alguns dos institutos mais atuantes no desenvolvimento de alternativas econômicas para a Amazônia: Arapyaú, do fundador da Natura Guilherme Leal, Instituto Humanize e Instituto Clima e Sociedade (ICS), além do Good Energies Foundation (GEF).
Mais capital filantrópico será necessário para implantar os demais laboratórios criativos e o pipeline já inclui as cadeias da castanha do Pará, do açaí e de óleos gourmet (pataúa, buriti, tucumã e castanha).
Mas, na visão dos irmãos Nobre, o sucesso da empreitada será medido pelo grau de autossuficiência e inserção das comunidades numa lógica capitalista.
Como a estruturação do negócio é uma etapa igualmente complexa, para pavimentar o caminho para as primeiras comunidades foi firmada uma parceria com o Conexus, instituto voltado a organizar negócios de locais produtores e cooperativas rurais e florestais para serem viáveis economicamente.
“Seremos bem sucedidos se eles conseguirem prescindir de ONGs e de capital filantrópico. Nosso modelo muda o padrão dos exemplos tradicionais em que uma instituição se responsabiliza por uma área e ali tudo acontece, com recursos, tecnologia, assistência técnica, mas não consegue se reproduzir por todos espaços da Amazônia porque não existe dinheiro no mundo que vá dar tanta assistência a fundo perdido.”