A antiquíssima banha de porco, ingrediente que já foi elementar na culinária brasileira, está de cara nova. Uma empresa brasileira está cultivando gordura suína em laboratório sem precisar abater o animal.
A startup de biotecnologia Cellva está prestes a concluir uma rodada de investimentos, fechou seu primeiro contrato comercial e almeja mudar a imagem da gordura, o “patinho feio” dos macronutrientes.
“Quando a gente fala de consumo de carboidratos, açúcares, vitaminas e proteínas, a gordura sempre fica escanteada, é vista como inimiga. Mas, se você for pensar, a gordura por si só é uma fonte de ácidos graxos essenciais como ômega 9, ômega 3. É energia”, diz Sérgio Pinto, CEO e cofundador da empresa.
Criada há apenas dois anos, a startup desenvolveu um método para multiplicar em apenas 21 dias células de gordura retiradas do animal vivo. Tudo acontece em equipamentos chamados biorreatores.
A produção da Cellva hoje é pequena, de apenas 15 quilos por mês, mas a ambição é grande: até 2030, a startup espera que a comercialização de seus produtos salte para 100 mil toneladas. Em tese, toda essa produção pode se originar de um único porco.
A Cellva testa a utilização da gordura em bolos, brownies e salsichas e pretende atender à demanda pelo ingrediente vinda da indústria alimentícia.
“Muitas vezes há falta de gordura no mercado. Há muitos animais, mas com alto índice de proteína, e um índice menor de gordura”, afirma Bibiana Matte, cofundadora e diretora científica da startup.
Mas ainda há muito trabalho pela frente. O desafio começa na comunicação – explicar a tecnologia e os benefícios por trás da produção – e continua pelo aspecto financeiro, para dar escala à tecnologia.
Com um laboratório em Porto Alegre, a Cellva tem se sustentado até aqui com recursos próprios – cerca de R$ 1 milhão – que saíram do bolso dos fundadores.
Para expandir o negócio, desde o começo do ano a Cellva foi procurar investidores no mercado de venture capital.
A startup está prestes a fechar uma rodada semente de R$ 9 milhões, que deve se encerrar em agosto. Até agora, já foram captados R$ 6,5 milhões.
O investidor-âncora é o fundo Seed4Science, ligada à gestora Fundepar, braço da Fundação de Apoio da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que financia projetos inovadores que misturam ciência, academia e tecnologia.
Também há aportes da EA Angels, rede de investidores-anjo do Rio Grande do Sul, e de investidores internacionais, como a ONG ProVeg International e as gestoras Rumbo Ventures, da Espanha, e AIR Capital, da Argentina.
O foco da startup até aqui tem sido desenvolver sua tecnologia e produtos. Já há uma patente depositada no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi). A ideia da Cellva agora é expandir o negócio – a meta é ter uma fábrica operando já no começo de 2026 – e comercializar os produtos que veio elaborando nos últimos dois anos.
A Cellva também não quer ficar restrita à gordura e, para isso, foi desenvolvendo outros produtos.
Por ora, a startup já está apta a vender os microcarreadores, substância que serve de suporte para as células se fixarem e se reproduzirem, e as microesferas, sistemas de encapsulamento de alimentos que podem conservar a presença de ingredientes que vão se perdendo durante o processo de fabricação.
Já para comercializar a gordura e os ácidos graxos, que são obtidos a partir da quebra das células (o popular ômega 3 é um exemplo de ácido graxo), a Cellva aguarda a liberação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
“Hoje, no curto prazo [em termos de produto] temos os microcarreadores e microesferas, no médio prazo, teremos a gordura, e no longo prazo, os ácidos graxos”, afirma Matte. “Daqui a seis meses, podemos ter encontrado uma quinta vertical no negócio.”
Como o processo funciona
O modelo de fabricação adotado pela Cellva é similar ao de carne cultivada em laboratório, em que há a multiplicação de células bovinas, e o resultado final é uma proteína que dispensa o abate de animais.
A produção começa a partir da extração de um pedaço do porco do tamanho de um grão de arroz, mas que contém centenas de milhares de células.
“É como se fosse uma biopsiazinha. A gente remove um pedacinho, como se fosse um pedacinho de pele retirado para fazer algum exame laboratorial”, diz Pinto.
Em seguida, essas células são congeladas em um biobanco, um precioso ativo que guarda as “matrizes” que serão a base de todo o processo.
“Com esse método, não precisamos voltar ao porco. Conseguimos desenvolver a partir do banco”, diz Matte.
A produção consiste em pegar o material guardado, descongelá-lo e inseri-lo em biorreatores, equipamento que lembra os fermentadores das cervejarias. É lá que as células vão se multiplicar, em uma solução de água, nutrientes e microcarreadores.
Ao fim desse processo, a Cellva consegue produzir a gordura – e, ao quebrar as células – também consegue extrair ácidos graxos.
Outros caminhos
Mas a startup foi descobrindo, ao longo do caminho, que a gordura por si só não seria seu único produto e principal negócio.
Outros produtos do processo produtivo, caso dos ácidos graxos, microcarreadores e das microesferas, também têm potencial de comercialização.
Com os microcarreadores, a startup mira a indústria farmacêutica e de biotecnologia, que utiliza esse material. O primeiro contrato acaba de ser fechado, em valor não revelado, com uma agência público-privada.
Como os microcarreadores ajudam na reprodução das células, a estrutura tem um valor de mercado elevado, chegando a R$ 30 mil o quilo. “Os nossos conseguem entregar hoje uma performance muito superior ao que tem no mercado, a um preço muito mais competitivo”, afirma Pinto.
Já as microesferas atendem à indústria de alimentos, com a encapsulação de aromas, óleos vegetais e bioativos como o ômega 3, segundo Matte.
Na hora de fabricar uma salsicha, por exemplo, uma indústria poderia utilizar a cápsula produzida pela Cellva para enriquecer seu produto com ômega 3 – que, sem as cápsulas, acabaria se perdendo durante o processo de produção em altas temperaturas.
O encapsulamento também pode servir para fixar melhor o aroma dos produtos, afirma Matte. “A indústria de alimentos precisa colocar muito aroma na produção do biscoito, porque ele vai se perdendo com a alta temperatura dos fornos.”
A intenção também, mais adiante, é vender os ácidos graxos extraídos da gordura. Caso a gordura não decole comercialmente, a Cellva poderia comercializar somente o nutriente extraído.
“Em vez de vender a gordura em si, a gente venderia já o benefício, que é a nutrição, vinda dos ácidos”, explica Sérgio Pinto.
De onde veio a ideia
A startup aproveita o know-how tecnológico de Matte e o conhecimento de Pinto da indústria alimentícia. Ele fez sua carreira no setor e teve passagens por grandes empresas como BRF e Pepsico.
Ainda na BRF, onde foi diretor global de inovação e novos negócios durante três anos, Pinto identificou um potencial inexplorado na gordura.
“Comecei a estudar nas horas vagas e fizemos um baita mapeamento de patentes, publicações, artigos, sobre todas as novas técnicas voltadas para a gordura”, diz.
No meio do caminho, ele e Matte, que já tinha uma startup em Porto Alegre focada em carne cultivada, a Ambi Real Food, começaram a conversar – e Pinto apresentou a ideia da startup para a pesquisadora gaúcha.
“Eu estava tentando fazer algo sozinha, mas me faltava justamente esse braço de negócios. E, ao mesmo tempo, o Sérgio estava como diretor de inovação na BRF, fazendo investimentos nesse universo. A gente acabou se conhecendo pela temática.”