Esta é a primeira de uma série de três reportagens especiais sobre os negócios da cannabis no país.
Uma economia da maconha vem se desenvolvendo no Brasil, mesmo sem regulamentações para o uso medicinal ou industrial. Importadores, farmacêuticas, empresas de tecnologia e associações estão criando um mercado vigoroso, apesar do vácuo legislativo.
Um projeto de lei que prevê inclusive regras para o plantio da cannabis, hoje proibido, aguarda aprovação pelo Congresso há nove anos. Enquanto não há notícias de Brasília, os negócios se apoiam em brechas na lei antidrogas de 2006, resoluções normativas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e ações judiciais.
Estima-se que mais de mil empresas atuem no setor, de olho em um potencial bilionário. No ano passado, só as aplicações medicinais da cannabis movimentaram cerca de R$ 700 milhões no país, um crescimento de 92% em relação a 2022, de acordo com o 2º Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil, publicado pela Kaya Mind, startup especializada em dados e inteligência de mercado no segmento.
Cerca de 430 mil brasileiros utilizam hoje o canabidiol – ou CBD –, canabinóide usado no tratamento de dezenas de patologias, entre elas epilepsia, depressão, Alzheimer, Parkinson e autismo.
O uso medicinal é apenas um dos três possíveis mercados da cannabis, ao lado do industrial e do recreativo (ou adulto), e o único atualmente permitido no Brasil.
Mesmo que seja a fonte dos princípios ativos de medicamentos, a planta não pode ser cultivada em solo nacional. Dono de uma das agriculturas mais avançadas do mundo, o país tem o potencial de ser um líder global na produção e também no consumo da cannabis e seus derivados, pois o Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos maiores compradores de remédios do mundo.
“Os olhos do mundo todo estão voltados para cá”, diz Viviane Sedola, empresária do setor desde 2018 e integrante do Conselhão da Presidência da República e de um grupo de trabalho sobre substâncias psicoativas, cuja missão é uniformizar o entendimento sobre o tema no governo federal.
Mercado de bilhões
Um levantamento da Kaya Mind publicado em 2021 calculou o potencial impacto econômico da cannabis no país. Usando projeções e dados nacionais e mundiais, ele apontou que, cerca de quatro anos após a aprovação de um marco regulatório – tempo necessário para ajustes do mercado –, os negócios da planta poderiam render US$ 5,3 bilhões à economia brasileira. E criar 328 mil novos empregos. Este total considera a legalização dos três usos da planta.
Os pioneiros que já exploram a nascente economia da cannabis no país formam um grupo diverso. Na frente medicinal, alguns experimentaram os benefícios da planta para a saúde, como o ex-tenista profissional Bruno Soares, que conheceu a cannabis por seus efeitos antiinflamatórios.
Em 2022, Soares liderou, por meio do fundo MadFish, um aporte de R$ 12 milhões no laboratório mineiro Ease Labs, que importa e distribui medicamentos à base de cannabis.
Outros vêm do lado da ciência. Claudio Lottemberg, ex-CEO do hospital Albert Einstein e hoje presidente do conselho da instituição, dirige os conselhos da Zion MedPharma e da Endogen, healthtechs focadas em produtos de cannabis. Em ambas ele é sócio de Dirceu Barbano, ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Essas startups esperam que a regularização abra o caminho para o desenvolvimento de uma indústria nacional, já que hoje muitos dos produtos têm de ser trazidos do exterior.
“Se o legislador ficar demorando, vão se criar caminhos para que empresas de outros países assumam um lugar que deveria ser de startups brasileiras, de indústrias brasileiras, de farmacêuticas brasileiras”, disse em entrevista recente ao Reset a advogada Patrícia Villela Marino, CEO da ONG Humanitas360 e uma das líderes do movimento que defende a legalização da cannabis.
Casada com Ricardo Villela Marino, de uma das três famílias controladoras da Itaúsa e do Itaú Unibanco, o maior banco privado do país, ela é dona de uma das vozes mais ativas a favor da legalização.
Um marco regulatório também reduziria o custo dos medicamentos, tanto para o paciente final quanto para governos municipais, estaduais e federal. Dados do Ministério da Saúde e de secretarias Estaduais de Saúde compilados pela Kaya Mind mostram que o país gastou R$ 165,8 milhões com fornecimento público de medicamentos derivados da cannabis, entre 2015 e a primeira metade 2023.
Sem regulação, eles ainda são fornecidos pelo SUS por meio de processos judiciais. A legalização permitiria a formulação de uma política de fornecimento desses medicamentos pelo sistema, o que facilitaria ao estado controlar a compra, negociar valores e acompanhar o uso de cada paciente.
Sustentável e versátil
Enquanto o Brasil explora exclusivamente o uso medicinal da cannabis, e ainda com inúmeras restrições, cerca de 50 países já regularam também o uso industrial do cânhamo.
O cânhamo é uma variedade de cannabis com baixíssimo teor de tetra-hidrocarbinol (THC), único canabinóide com efeito psicotrópico entre as mais de 400 substâncias presentes na planta.
Ele tem mais de 25 mil aplicações e é 100% aproveitável. Da semente é extraído o óleo, utilizado em diferentes tipos de alimentos, cosméticos e biocombustíveis. Da flor, os extratos, e do caule, fibras aproveitadas nas indústrias têxtil, alimentícia, automotiva e de construção.
Outra vantagem do cânhamo é a produtividade. Enquanto uma árvore comum leva quatro anos para estar apta para a produção de papel, por exemplo, ele leva quatro meses.
O cultivo adapta-se a vários tipos de terrenos e solos, formando raízes que ajudam a manter a umidade e limpam metais pesados da terra, por meio de um processo chamado fitorremediação. Ricos em nutrientes, seus caules e folhas também ajudam na restauração. E a produção do cânhamo é neutra em carbono.
Num país com uma das agriculturas mais avançadas do mundo, a plantação em si já poderia ser um grande negócio, segundo Sedola.
“Para ser plantada no Canadá, por exemplo, a maconha requer um sistema de aquecimento da água, por conta das baixas temperaturas do país”, afirma a empresária. “Nós temos clima, recursos hídricos e solo adequados para cultivar com a mesma qualidade da Colômbia, que tem várias colheitas anuais usando exclusivamente recursos naturais.”
E o baseado?
A maioria dos defensores da regulamentação acredita que, para avançar, é preciso excluir do debate a legalização do uso recreativo da cannabis. O consumo adulto da planta, utilizada apenas por seus princípios psicotrópicos, é legalizado em poucos países, entre eles o Canadá e o Uruguai.
“E ele não é consenso, muito pelo contrário”, diz Marcel Grecco, CEO do The Green Hub, plataforma de inovação e impacto do setor de cannabis. “O estigma negativo da maconha ainda barra todo o resto.”
Grecco acredita, porém, que os avanços do mercado medicinal no país e a crescente difusão de informação sobre os benefícios da planta para a saúde podem ajudar a acelerar a regulação da vertical médica, puxando consigo a do uso industrial.
Uma pesquisa divulgada em setembro pelo Datafolha apontou que 72% dos entrevistados são contra a legalização da cannabis para uso adulto, mas 76% mostraram-se favoráveis ao seu uso medicinal.
“A grande divergência ainda é sobre a cadeia produtiva, se cultivamos localmente ou seguimos trazendo de fora. Queremos gerar valor dentro do país ou seguiremos dolarizando o mercado, por receio dos desvios de finalidade?”, pergunta Grecco.
Maria Eugenia Riscala, cofundadora e diretora da Kaya Mind, fala em negacionismo. “O mercado enfrenta uma falta de informação imensa, com discursos emocionados, sem fundamentos e argumentos anticientíficos, que são amplificados por segmentos mais conservadores da sociedade.”
As mães da maconha
A discussão em torno da liberação do uso medicinal da cannabis no Brasil começou entre 2014 e 2015, por pressão de pais cujos filhos sofriam de patologias com tratamentos eficazes à base de canabidiol, entre elas a epilepsia e o autismo.
Em maio de 2015, a Anvisa autorizou, por meio da RDC 17 (Resolução da Diretoria Colegiada), a importação de medicamentos à base de canabidiol em caráter excepcional. Ela seria permitida apenas para pacientes refratários, ou seja, aqueles sem resposta a nenhum outro tipo de terapia. De lá para cá, a agência publicou novas RDCs que simplificaram critérios e burocracias de importação.
“A RDC 327 (de 2019) permitiu a comercialização de medicamentos à base de cannabis produzidos por empresas autorizadas em farmácias, facilitando o acesso da população a eles, e a RDC 660 (de 2022) normalizou a importação direta, para uso pessoal”, afirma Grecco.
Além da importação e da venda em farmácias, a terceira via para a compra de medicamentos à base de cannabis são as associações. Em todas elas, é necessária receita médica, que fica retida.
Formadas por pacientes, familiares, profissionais da saúde e ativistas, algumas associações obtêm autorização judicial para, além de fornecer produtos, cultivar a planta. O anuário da Kaya Mind lista mais de uma centena de associações atuando no país, mas apenas 16 têm permissão judicial para o cultivo.
Uma das primeiras a obter a autorização, em 2017, foi a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança, ou Abrace Esperança, que mantém o cultivo de quatro hectares de cannabis em Campina Grande (PB).
“Ao lado das mães da maconha, que batalharam muito para conseguir tratar seus filhos com cannabis, essas associações destravaram o caminho do uso medicinal da planta no Brasil”, diz Grecco. “Sem eles, ele teria sido ainda mais difícil e lento. Portanto, são dois grupos que não podem ficar de fora do marco, precisam ser contemplados.”
Exportador de conhecimento
Segundo especialistas, a aprovação do marco regulatório da cannabis também dará ao Brasil condições de exercer seu potencial protagonismo na produção científica na área.
Pesquisas já são permitidas segundo a lei antidrogas, de 2006. Mas, sem a regulamentação, obter licenças e insumos para desenvolvê-las é um processo lento e difícil. “Hoje a China e os Estados Unidos produzem diversas patentes sobre o uso do cânhamo, por exemplo, porque podem cultivá-lo. Nós estamos ficando para trás”, explica Bruno Pegoraro, presidente do Instituto de Pesquisas Sociais e Econômicas da Cannabis (Ipsec).
“Perdemos uma grande oportunidade de exportar conhecimento sobre cannabis. O Brasil tem os melhores cientistas do mundo, mas a planta ainda fica fora de seus estudos”, concorda Maria Riscala.
Em outubro, a Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, entrou com pedido de autorização na Anvisa para o cultivo de 5 mil plantas. O objetivo, com isso, é criar o primeiro banco genético de Cannabis sativa do país.
Com os primeiros resultados, seria possível estabelecer parcerias com bancos genéticos de cannabis em diferentes países, formando uma rede global de conhecimento.