A notícia passou despercebida fora dos círculos da aviação, mas um voo de 1h11 entre Malmö e Estocolmo, na semana passada, vai entrar para a história: pela primeira vez uma aeronave comercial voou usando somente combustíveis renováveis.
Operado pela companhia sueca Braathens, o turboélice bimotor da franco-italiana ATR fez o trajeto queimando somente biocombustível à base de resíduos vegetais, gorduras animais e material reciclado, incluindo óleo de cozinha usado.
Segundo a Neste, a companhia finlandesa que fabrica o combustível sustentável de aviação (conhecido pela sigla em inglês SAF), seu produto representa uma redução de até 80% das emissões de gases de efeito-estufa em comparação com o querosene de aviação tradicional.
A aeronave tinha apenas três tripulantes – apesar de ser uma das principais rotas dentro da Suécia, não havia passageiros a bordo.
Alguns reguladores permitem uma mistura de até 50% de renováveis, mas a maioria das áreas usa SAFs em pequenas quantidades.
O voo da Braathens recebeu aprovação especial da autoridade de segurança aérea da União Europeia.
A aviação comercial responde por algo entre 2% e 3% do total de emissões de CO2 do mundo, e o setor se comprometeu com a neutralidade de carbono até 2050.
Os combustíveis sustentáveis serão fundamentais para que se atinja essa meta, pois no estado atual da tecnologia somente aviões de pequeno porte poderão ser equipados com baterias e motores elétricos.
O hidrogênio verde, outra alternativa para a descarbonização, também vai demorar para tornar-se viável.
Já os combustíveis sustentáveis estão aí e são usados com sucesso como mistura. Um dos objetivos do voo da Braathens foi justamente mostrar que é possível ir além dos 50% permitidos pela maior parte dos reguladores internacionais.
Plug and play
Umas das principais vantagens dos SAF é a compatibilidade com os motores a querosene tradicional. As adaptações necessárias são simples e custam muito pouco em comparação com as outras opções.
A companhia sueca já anunciou a intenção de usar combustíveis renováveis em 100% de suas linhas domésticas a partir de 2030.
Existem várias rotas possíveis para a produção de SAFs, e uma das mais relevantes é a que envolve biomassa – um tipo de matéria-prima em que o Brasil é reconhecidamente competitivo.
A BSBios, por exemplo, está investindo US$ 1 bilhão em uma unidade produtiva no Paraguai com o objetivo de produzir 1 bilhão de litros de combustíveis de origem orgânica, incluindo um querosene verde para aviões. A biorrefinaria da companhia ainda está no estágio de planejamento, mas o interesse é cada vez maior. Outra brasileira que tem olhado para esse segmento de mercado é a Raízen.
Jonathan Wood, vice-presidente de aviação renovável da Neste, afirmou em entrevista recente que tanto as companhias aéreas quanto os aeroportos já queriam saber tudo a respeito de SAFs mesmo antes do choque energético causado pela guerra da Ucrânia.
A Neste produz hoje 120 milhões de litros de SAF em suas duas plantas, uma na Holanda e outra em Cingapura. O plano é aumentar esse volume em até 15 vezes até o final do ano que vem. Os finlandeses já têm entre seus clientes American Airlines, Ryanair e Etihad, entre outras.
A United Airlines se comprometeu a cortar pela metade suas emissões de gases de efeito-estufa em 2035 (comparando com o ano-base de 2019).
Durante uma reunião da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata), na semana passada, o CEO da aérea, Scott Kirby, afirmou que os SAF são a “coisa mais importante” que a empresa está fazendo.
“Nos comprometemos [com a de compra] de mais do dobro de SAF que o resto das empresas áreas. Estamos investindo na tecnologia. Temos de dez a doze investimentos em startups que trabalham com diferentes matérias-primas”, afirmou Scott.
Pane seca?
Mas, como ele próprio completou, os combustíveis sustentáveis são uma gota no oceano dos fósseis que os aviões queimam todos os dias há décadas.
De acordo com uma estimativa, os SAF respondem por menos de 0,1% do consumo global. Hoje, mesmo que quisessem encher metade dos tanques de seus jatos com a alternativa mais verde, as empresas aéreas simplesmente não teriam onde conseguir essa alternativa mais verde.
“Podemos estabelecer as metas que quisermos, com as datas que quisermos, mas se não houver oferta…”, disse Akbar Al Baker, CEO da Qatar Airways, na reunião da Iata.
Com o preço do petróleo nas alturas, as grandes petroleiras teriam o estofo financeiro necessário para garantir uma transição sem sobressaltos.
O comentário mais cínico foi feito por Tony Douglas, chefão da Etihad Airways, dos Emirados Árabes Unidos.
Segundo a colunista Peggy Hollinger, do Financial Times, Douglas sugeriu que as metas de descarbonização do transporte aéreo são irrealistas e que muitos dos executivos só se comprometeram com elas porque sabem que estarão aposentados há muito tempo e não serão responsabilizados quando elas forem inevitavelmente descumpridas.