ENTREVISTA: BNDES vai induzir industrialização ligada ao hidrogênio verde

Banco aprovou quatro primeiros financiamentos a usinas de biometano e já mapeou US$ 30 bi em projetos de hidrogênio verde, diz Luciana Costa

Luciana Costa, diretora do BNDES responsável por transição energética e infraestrutura
A A
A A

Como diretora de infraestrutura, transição energética e mudança climática do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social desde o início de 2023, a economista Luciana Costa lidera uma das áreas mais estratégicas do banco de fomento para a descarbonização da economia brasileira. 

Responsável por financiar a maior parte dos projetos de energia do país há décadas, o banco agora trabalha no desenho do setor para o futuro.

“O BNDES financia a transição energética há 15 anos, participou de todo o ciclo de renováveis no Brasil. Eólica e solar são o nosso dia a dia. Agora estamos olhando para onde o banco vai. Estamos olhando para biocombustíveis e, obviamente, para hidrogênio verde”, diz Costa, que fez carreira no mercado financeiro e deixou o posto de presidente no Brasil do banco francês Natixis para se juntar à equipe do BNDES.

Na reta final de 2023, o banco aprovou os quatro primeiros financiamentos a projetos de biometano, três a partir de lixo urbano e um a partir de resíduos da agricultura. O combustível renovável pode ser usado não só para produzir eletricidade, mas como substituto do diesel e para descarbonizar uma série de indústrias.

Em outubro, foram liberados R$ 99,8 milhões do Fundo Clima para o Grupo Solví e a Arpoador Energia implantarem uma usina em aterro na região metropolitana de Porto Alegre (RS). Em novembro foram mais R$ 157 milhões – sendo R$ 79,8 milhões do Fundo Clima – para a Bioo Holding construir outra usina em aterro em Triunfo, também no Rio Grande do Sul.

Em dezembro foram mais R$ 99,8 milhões para uma usina da Essencis Biometano no maior aterro sanitário do país, em Caieiras, na região metropolitana de São Paulo. Outros R$ 135 milhões foram para um projeto de biogás da Cocal Energia em Paraguaçu Paulista (SP), que aproveitará palha de cana, torta de filtro e vinhaça, todos rejeitos da produção de açúcar e álcool.

No ano todo, a área aprovou R$ 52 bilhões em novos financiamentos e desembolsou R$ 40 bilhões. “Quase tudo ligado a transição energética e clima. Saneamento não é energia, mas tem enorme impacto social e climático.”

Para 2024 a área vai expandir os negócios. “Precisaremos crescer pelo menos 10% a 15%. Estamos trabalhando no pipeline.”

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Quais os planos do banco para financiar a produção de hidrogênio verde?

Já mapeamos mais de US$ 30 bilhões em memorandos de entendimento de projetos de produção de hidrogênio verde assinados por vários clientes no Brasil, em diferentes estágios de maturação.

Ninguém inicia um projeto de energia sem falar conosco. Hoje, o Brasil tem mais de 200 gigawatts de capacidade de geração instalada, 85% disso é renovável, e o BNDES financiou mais de 80% de tudo.

No segmento eólico, o BNDES não só financiou cerca de 80% de toda a capacidade instalada, como fomentou o desenvolvimento de toda a cadeia. Assim, 80% dos componentes de um aerogerador hoje são fabricados no Brasil. A gente entende que o financiamento do setor energético deve estar ligado à industrialização.

Isso é algo que vocês querem replicar no hidrogênio verde? 

Sim. Queremos fomentar a fabricação do eletrolisador no Brasil, a planta do hidrogênio verde, a planta de eólica e solar que vai ser dedicada para a fabricação do hidrogênio verde. E, depois, fomentar a fabricação da amônia verde ou fertilizante verde ou HBI verde [hot briquetted iron ou ferro-esponja] que serão feitos desse hidrogênio.

Nossa estratégia é adensar a cadeia de valores. 

Para não exportar o hidrogênio simplesmente?

Sim. Mas no Brasil vai ter espaço para as duas coisas. Podemos nos beneficiar dos leilões que a Europa está fazendo, por exemplo, e exportar a amônia verde. Mas também vai ter demanda externa para hidrogênio verde. 

No mercado local, a Vale tende a ser um grande consumidor do combustível. Ela vai descarbonizar as locomotivas, substituindo o combustível fóssil por amônia verde. Vai descarbonizar o transporte marítimo usando o metanol, feito a partir do hidrogênio verde.

A vantagem do Brasil é que, por ter dimensões continentais, poderá se beneficiar tanto do mercado externo, quanto do doméstico. 

Como deve ficar a divisão desse bolo?

A demanda começa com o mercado externo, mas arriscaria que mais de 50% serão destinados ao mercado interno no futuro. Porque temos visto muitos grandes players brasileiros discutindo descarbonização usando o hidrogênio verde, nas indústrias de difícil abatimento do carbono.

Mas hoje vemos muitas cartas de intenção sendo assinadas e nada de concreto acontecendo…

Acabei de voltar da COP em Dubai e ficou claro que o Brasil é a única grande economia que possui algumas vantagens comparativas combinadas. Temos estabilidade geopolítica, temos a maior floresta tropical do mundo, a maior biodiversidade do mundo, o maior potencial de captura de carbono do mundo, segurança alimentar, custo de energia renovável super competitivo, dos mais baratos do mundo. Temos um potencial de biomassa grande, temos a indústria de etanol madura e já escalada. Nosso sistema elétrico é regrado. As hidrelétricas funcionam como uma grande bateria. 

E o Brasil é um país de dimensões continentais que entrega energia renovável e firme em qualquer lugar do país, porque nós temos mais de 180 mil quilômetros de linha de transmissão. Em quatro anos, teremos 270 mil quilômetros de linhas de transmissão, por causa dos leilões que vão gerar novos investimentos.

Nenhuma grande economia tem isso tudo. A China não tem, a Índia não tem, os Estados Unidos não têm. Esses países estão escalando o investimento em renováveis agora e nós fizemos isso em 2004, há 20 anos. A nossa matriz energética é 47% renovável, comparado com a média da OCDE, que é de 14%. E a matriz elétrica é 85% renovável. 

E o mundo não tem noção disso ainda. A gente pode ajudar os outros países a descarbonizar e cumprir suas NDCs [metas de descarbonização que fazem parte do Acordo de Paris]. O Brasil é a única grande economia que tem condições de cumprir o Acordo de Paris antes de 20240 sem necessidade de desenvolvimento de nenhuma nova tecnologia.

Na verdade, em 2050, dependendo do que acontecer, a gente vai ser carbono negativo.

O Brasil pode colaborar muito com o mundo nesse processo de descarbonização. Um exemplo é o setor de aviação. A demanda por combustível sustentável de aviação, o SAF, vai ser gigantesca. Brasil e Estados Unidos são os países que vão ser os grandes players de SAF. O Brasil vai ser um grande player de hidrogênio verde. 

E por que esses investimentos não acontecem mais rapidamente?

Porque para que esses investimentos aconteçam mais rapidamente, o grande ‘xis’ da questão é precificar a externalidade negativa, é precificar a emissão de carbono. Se o mundo fizesse um acordo para que o ‘phase down’ do petróleo fosse acelerado, isso mudaria o custo e nós seríamos vencedores. Só que o mundo ainda não precifica e nem paga prêmio por todas essas nossas vantagens comparativas.

O produto industrializado brasileiro, a nossa indústria de alumínio, emite menos carbono que a média global. Mas ninguém paga um prêmio verde pelos nossos produtos. 

No caso do hidrogênio verde, embora o Brasil vá ter o produto mais barato do mundo, hoje ele não concorre com outro hidrogênio verde, concorre com o hidrogênio cinza [feito de gás natural]. E aí a gente está falando de US$ 4 dólares por quilo do hidrogênio verde versus US$ 1,80 do hidrogênio cinza.

Mas vemos outros países que também estão concorrendo com o hidrogênio cinza, mas que têm projetos em fase mais adiantada, não é?

O maior projeto é o da Arábia Saudita, que investiu o dinheiro do petróleo. Mas o mundo de forma geral não está escalando rápido. Outros países estão na nossa frente porque o Brasil demorou para acordar, para que a sociedade e o setor privado entendessem essa nossa vantagem comparativa.

A gente está discutindo agora taxonomia verde, PL do hidrogênio, PL do mercado de carbono regulado, PL de captura de carbono, PL de combustível de baixo carbono. A Europa tem a taxonomia há alguns anos. Peru, Colômbia, México, todos têm mercado de carbono. Então, entramos atrasados nesse jogo global da economia verde, mas estamos correndo atrás do prejuízo.

Os primeiros projetos de hidrogênio verde vão acontecer entre 2025 e 2026, quando o investidor tomará a decisão de investimento e nós vamos aprovar o financiamento.

Quando você fala de garantir a industrialização a partir do hidrogênio verde, como pretendem direcionar essa política? 

O BNDES, via financiamento, vai estimular a nacionalização progressiva da fabricação de eletrolisadores. Exatamente como fizemos com o aerogerador das eólicas. A gente só financia quem tem a fabricação nacional.

No início vamos ter que financiar com importação, claro. Mas vamos usar os recursos do Fundo Clima, com custo mais atrativo para o cliente e prazos mais longos.

O momento não é favorável para novos investimentos em energia renovável. Como vocês estão olhando esse cenário de necessidade de aumento da capacidade de geração?

O preço da energia está baixo [porque os reservatórios das hidrelétricas estão cheios] e o preço do Capex [investimento em bens de capital] só aumentou [com elevação dos juros]. Mas a gente entende que isso é conjuntural. Daqui a pouco o preço volta para um patamar que viabilize novos projetos.

E o Brasil vai ter condições de atrair setores intensivos em energia. Está havendo um aumento de investimento em data centers porque dependem de muita energia para funcionar e aqui ela é renovável.

Publicamos há algumas semanas a informação de que parte dos recursos do bônus verde emitido pelo Tesouro irão para o BNDES, para o Fundo Clima. Quanto vocês devem receber e em que será aplicado?

A gente está esperando R$ 10 bilhões. Os recursos irão para o Fundo Clima para financiar setores específicos, incluindo biometano, eólico e solar, saneamento, setores prioritários para a transição da economia. Também eletrificação de frota e floresta. 

A eletrificação da frota de ônibus urbanos fica dentro de infraestrutura e é prioridade para o banco. Fechamos o financiamento de R$ 2,5 bilhões para a prefeitura de São Paulo comprar 1,3 mil ônibus elétricos. O Brasil tem 107 mil ônibus e tem muito espaço, mas nenhuma outra prefeitura está madura como a de São Paulo ainda.

Você já disse que o banco está mirando um Fundo Clima de R$ 50 bilhões…

Sim. Os R$ 10 bi do Tesouro são só para começar. Gostaríamos de gastar logo, de maneira inteligente, eficiente, para chegar a esses R$ 50 bilhões. Hoje tem R$ 3 bilhões no fundo, então esses R$ 10 bi já vão representar um bom aumento. Mas obviamente serão insuficientes para tudo que a gente precisa fazer.

Não dependemos só do Fundo Clima. Temos os recursos do nosso próprio balanço e o BNDES captou linhas com o BID, assinou memorando de entendimento com o Banco Mundial. Tem muitas linhas externas disponíveis para a produção. Só precisamos de bons projetos e o BNDES tem expertise em estruturação.

E no combustível sustentável de aviação, o SAF, como estão as negociações para escalar a produção?

Já existem projetos de SAF em andamento, mas para escalar precisa entrar a obrigatoriedade de mistura com combustível tradicional de avião. E isso começa em 2024, sem adesão de todos os países, e, a partir de 2027, com adesão de mais países. Então, no momento em que se criar demanda, aí vai escalar o SAF. Porque hoje ele é muito mais caro do que o combustível tradicional.

A Acelen [do fundo Mubadala] tem um projeto de SAF em andamento. Petrobrás e Raízen estão olhando. 

O BNDES deve financiar o projeto da Acelen, de combustível de macaúba? 

Sim, é nosso cliente, conversamos com eles em Dubai e estamos aqui na torcida [ pela decisão de investimentos que será tomada em 2024]. Ainda não sabemos o tamanho do financiamento, mas a estratégia do BNDES é ser um financiador relevante, e ter poder como credor.

A descarbonização do transporte de carga rodoviário está na agenda do banco também? 

É um setor ‘hard to abate’, de longa distância, e está na nossa agenda. Será feito com hidrogênio verde e diesel verde. Temos conversas com a Petrobras para diesel de baixo carbono. A Petrobras vai converter algumas refinarias. 

Gostaríamos que fosse mais rápido. Mas, de novo, precisa ter mandato, precisa ter regulação que obrigue a mistura, porque o diesel verde é mais caro. Precisa ter mercado de carbono, precisa ter regulação. 

Você já defendeu a exploração de petróleo na Margem Equatorial pela Petrobras e essa parece ser uma posição dominante dentro do governo, com exceção do Ministério do Meio Ambiente, do Ibama. Sua posição segue a mesma? Por que?

Acho que a gente tem, sim, que fazer a pesquisa exploratória, porque durante o phase down do petróleo para a transição energética nós precisamos disso. A demanda por energia existe, enquanto escalamos a oferta de substitutos para o petróleo. Se o mundo simplesmente reduzir a oferta, o preço do petróleo dispara. 

O Brasil tem o pré-sal, com 14 bilhões de barris de óleo equivalente provados. Mas em algum momento, depois de 2032, 2033, a curva de produção vai cair. Se não abrirmos uma nova fronteira, o Brasil tem o risco de se tornar importador de petróleo. 

Na Margem Equatorial, é estimado que existam 10 bilhões de barris de óleo equivalente, algo que tem que ser pesquisado e confirmado. 

Primeiro o mundo vai parar de produzir petróleo nos campos que são menos competitivos e a Petrobras é mais competitiva. 

Além disso, enquanto as emissões de gases de efeito-estufa do escopo 3 [que diz respeito ao consumo dos derivados do petróleo] são iguais para todo mundo, nos escopos 1 e 2, que dizem respeito a como está sendo explorado e produzido o petróleo, a Petrobras também é mais competitiva em carbono. Então, seria pior importar petróleo.

A indústria do petróleo é parte da equação da transição e a transição energética justa é não deixar ninguém para trás e não aumentar a pobreza e o risco de insegurança energética.

Mas até prospectar, fazer os investimentos e começar a tirar óleo não vamos passar do período da transição?

Em 4 anos é possível começar a produzir. A Petrobras tem muita tecnologia para isso.

Claro que tem que fazer com a maior segurança possível, tem que cuidar da biodiversidade. E eu defendo que a Petrobras seja mais agressiva em investimentos em transição energética. Em diesel verde, SAF, captura de carbono, floresta e eólica offshore.