TRANSIÇÃO ENERGÉTICA

O governo quer comprar energia a carvão. O Brasil precisa?

Baterias e biocombustíveis ficam de fora de leilão para suprir demanda quando renováveis não geram; críticos apontam retrocesso climático

Usina de carvão

O governo federal anunciou no final de agosto novos leilões para a compra de energia que pode ser entregue imediatamente para cobrir períodos de alta demanda, quando não há geração de eólicas e solares.

A proposta inclui hidrelétricas e geração via fontes fósseis, incluindo novas termelétricas movidas a gás natural. Também prevê a contratação de usinas a carvão, o mais sujo dos combustíveis fósseis.

A medida pegou de surpresa especialista e ambientalistas, que questionam a real necessidade dessa escolha para garantir a estabilidade do fornecimento de energia no país.

A eletricidade brasileira é uma das mais limpas do mundo. No ano passado, quase 90% dela veio de hidrelétricas, solares e eólicas. O país está andando na contramão da transição energética global?

A resposta não é simples.

As renováveis produzem de forma intermitente. As termelétricas são necessárias para suprir períodos sem sol ou vento, especialmente nos horários de pico, entre 18h e 22h. Sem essa garantia, há o risco de apagões já no ano que vem, segundo o governo

O aumento das emissões de carbono seria um problema menor diante de um colapso do sistema elétrico e do impacto econômico que ele causaria, de acordo com essa visão. O próprio uso de térmicas no país foi uma resposta ao apagão de 2001.

Nem todos são convencidos por essa explicação. O país poderia recorrer a baterias ou à queima de biocombustíveis para despachar potência, como se diz no jargão do setor.

“É contraditório e vai atrasar a inserção dessas alternativas no sistema. Há outras formas de prover flexibilidade sem dar subsídio para uma energia fóssil precária”, diz Clauber Leite, diretor de energia sustentável e bioeconomia do Instituto E+ Transição Energética.

A sobrevida do carvão

Esta é a segunda tentativa do governo de contratar mais potência. A primeira, que teve consulta pública aberta em março de 2024, foi cancelada após uma série de questionamentos judiciais relacionados a preço e ao uso de instalações mais antigas. 

A proposta previa a conversão de usinas originalmente de óleo diesel para utilização de fontes renováveis, em especial o biodiesel. Agora, não só foi retirada essa possibilidade como foram estabelecidos dois leilões separados: um para carvão, gás natural e hidrelétricas e outro só para óleo diesel.

A proposta anterior também não mencionava carvão, fonte altamente poluente que vem sendo desmobilizada no mundo todo. Este acabou se tornando o ponto mais controverso dos novos leilões, que devem ocorrer em março.

Somente projetos já existentes  poderão apresentar propostas. São unidades “já operacionais, com infraestrutura de conexão, licenciamento e contratos de transmissão vigentes”, diz a nota técnica do Ministério de Minas e Energia.

Ou seja, não serão construídos ativos novos, que dariam uma sobrevida potencial de décadas para o carvão mineral.

Especialistas do Observatório do Clima, uma rede de mais de cem ONGs ambientais e climáticas, atribuem a inclusão do carvão no certame a uma “busca incessante do Executivo em garantir o atendimento de interesses de grupos específicos”, ou seja, o lobby do carvão.

No início do ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou um trecho do Projeto de Lei 576/2021 que previa a obrigatoriedade de contratação de térmicas a carvão mineral, com a extensão de contratos já existentes até 2050. 

Houve manifestações de trabalhadores do setor no Rio Grande do Sul, que concentra a maioria dessas térmicas, e uma promessa da Associação Brasileira do Carbono Sustentável, que reúne as carvoeiras, de lutar judicialmente contra o veto.

O fato é que, entre todas as fontes fósseis usadas para gerar eletricidade, o carvão deve ser a primeira a ser aposentada globalmente. No Reino Unido, o berço da Revolução Industrial e marco zero da mudança do clima, a última usina a carvão foi desativada em setembro do ano passado.

O BNDES não financia novos projetos de usinas que queimem esse combustível fóssil desde 2021.

Em junho de 2023, a Engie, uma das principais empresas de energia do Brasil, vendeu sua usina termelétrica a carvão no município gaúcho de Candiota, conhecido pelos empreendimentos carvoeiros.

O negócio foi parte da estratégia da companhia de eliminar o uso do minério em sua matriz energética. A usina, que segue com licença para operar, foi vendida para a Perfin Space X e Grafito por R$ 2,05 bilhões. Os compradores prometeram tirá-la de operação até 2040.

No Brasil, o setor recebeu R$ 1,07 bilhão em subsídios oficiais em 2024, segundo a organização Global Energy Monitor.

Dando um gás no gás

O Brasil tem uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo, mas há mais de 20 anos é o gás natural que garante que não falte luz no país em horários de pico.

Na esteira do apagão de 2001, o governo criou um programa emergencial para construir 21 termelétricas, com vantagens financeiras e subsídios que permanecem até hoje.

Os novos leilões também preveem a construção de térmicas a gás. No curtíssimo prazo, o fornecimento virá de usinas existentes, mas os novos empreendimentos podem ser necessários já em 2027 ou 2028.

O Plano Decenal de Expansão de Energia, documento do Ministério de Minas e Energia que estima a demanda energética no país para os próximos dez anos, prevê uma média de crescimento de 3,5% ao ano de demanda termelétrica entre 2028 e 2034.

Isso se reflete nas emissões de gases de efeito estufa do setor. Segundo o Instituto Meio Ambiente e Energia (IEMA), um centro de estudos especializado no setor, o uso de termelétricas no Brasil cresceu 200% entre 2000 e 2020. Já as emissões de gases de efeito estufa com origem em termelétricas saltaram 113% no mesmo período.

Enquanto o país se comprometeu perante a ONU com uma redução de pelo menos 59% em suas emissões até 2035, as da geração de eletricidade devem crescer 11% no período, segundo as projeções setoriais do Plano Clima.

Os contratos têm duração de 15 anos. “Os projetos são elaborados para se pagar dentro desse prazo”, diz Ana Karina Souza, advogada sócia do escritório Machado Meyer que atua na área de energia.

Terminado o compromisso, as plantas podem ser adaptadas e eventualmente participar de novos leilões – e este é outro motivo de críticas aos editais.

As alternativas excluídas

Diferentemente da luz do sol ou dos ventos, o gás natural responde “sob demanda”. É essa capacidade de acionamento imediato que torna a energia térmica uma peça importante para o equilíbrio do sistema.

Mas a imprevisibilidade dessas fontes renováveis tem um outro lado: em alguns momentos, elas geram eletricidade de sobra. Essa energia poderia ser estocada. Isso evitaria o chamado curtailment, ou o corte imposto pelo Operador Nacional do Sistema (ONS) a geradores de energia limpa para evitar sobrecargas.

E as baterias teriam a mesma função das usinas movidas a fósseis, despachando o acumulado nos horários de maior demanda.

“O leilão pode aliviar o pico de demanda durante a noite, mas é uma energia cara, em especial se forem construídas novas usinas. Estamos oferecendo soluções do século 19 para problemas do século 21”, diz Markus Vlasits, presidente da Associação Brasileira de Soluções para Armazenamento de Energia.

Esses sistemas de armazenamento usam baterias de íons de lítio, parecidas com as usadas de eletrônicos e carros elétricos, e se beneficiam dos mesmos avanços tecnológicos disponíveis para a Apple e para a BYD.

Isso significa ter acesso a baterias cada vez mais baratas e com maior capacidade. Nos Estados Unidos, o custo de armazenar um kilowatt/hora em uma bateria caiu de US$ 3.000 para US$ 150 nos últimos 15 anos.

“O custo de implementação pode ser mais alto, mas todos os estudos e análises que estão sendo feitos mostram que o ganho depois é real, as baterias se pagam”, diz Anton Schwynter, analista de projetos do IEMA.

O país ainda não tem uma regulamentação para integrar essa nova tecnologia no sistema elétrico. Em agosto, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) aprovou as diretrizes para iniciá-la. A expectativa é que o próximo leilão do governo federal seja voltado para armazenamento de energia em baterias.

Remunerando quem poupa

Também ficou de fora do leilão o mecanismo de resposta da demanda, no qual consumidores de grande porte são remunerados por reduzirem seu consumo de energia elétrica em momentos de alta demanda, evitando o acionamento de fontes de geração mais caras e poluentes. 

“É uma solução excelente, mas pouco aproveitada no Brasil. Em vez de construir um leilão de capacidade diverso, a impressão que fica é de que o governo cedeu às pressões dos setores que estão com dificuldade de se adequarem à nova realidade”, diz Clauber Leite.

Quem paga a conta são os consumidores. ​​Enquanto o custo médio da energia do Brasil é de R$ 307 por gigawatt/hora em 2025, segundo a Aneel, a das termelétricas pode custar até R$ 1.400. Já a energia sustentável tem preço médio entre R$ 150 e R$ 200 por gigawatt/hora.

“A situação evidencia uma contradição estrutural: o Brasil possui abundância de recursos renováveis, mas, paradoxalmente, a desperdiça ao mesmo tempo em que paga caro pela manutenção de um conjunto significativo de usinas fósseis”, diz a nota do Observatório do Clima.