Não é de hoje que os resíduos orgânicos da agricultura, da pecuária e do lixo produzido nas cidades brasileiras têm potencial econômico. É possível gerar até mesmo um combustível sustentável que substitui o gás natural de origem fóssil sem a necessidade de adaptações nos equipamentos ou na infraestrutura de distribuição.
Conhecido como biometano, ele promete descarbonizar setores desafiadores como a indústria e finalmente começa a deslanchar no Brasil. Apesar dos incentivos para desenvolver essa nova cadeia de energia limpa, ainda é preciso desatar nós, de acordo com pessoas ligadas ao setor ouvidas pelo Reset.
Hoje o Brasil tem 14 plantas, com capacidade total de gerar 900 mil metros cúbicos de biometano por dia. O volume é ínfimo comparado aos cerca de 50 milhões de metros cúbicos de gás natural consumidos diariamente no país.
O potencial, porém, é grande. No curto prazo, a oferta de biometano poderia ser multiplicada por quatro, de acordo com a Abiogás, entidade que reúne as empresas do setor. No longo prazo, a associação vê um potencial teórico de 120 milhões de metros cúbicos (veja quadro abaixo).
A matéria-prima da alternativa sustentável são resíduos orgânicos de qualquer tipo. No processo de decomposição, eles geram biogás, que depois de purificado pode substituir o combustível fóssil em qualquer aplicação – com a vantagem da neutralidade em carbono.
Os restos da produção agrícola, principalmente em usinas de cana-de-açúcar, o lixo acumulado em aterros sanitários e os gases das estações de tratamento de esgoto representam um enorme potencial.
Hoje, os principais nomes à frente da produção são a Gás Verde, a GNR Fortaleza, a Raízen e a Cocal, mas novos atores começam a chegar ao mercado. A gestora de aterros sanitários Orizon acabou de receber aval da Agência Nacional do Petróleo (ANP) para uma primeira planta em Pernambuco. Outras três seguem em análise pelo órgão.
Há ainda mais projetos no radar, mas para bater o martelo a empresa está à espera de avanços no setor, principalmente da regulamentação da Lei do Combustível do Futuro.
“Já são 500 mil metros cúbicos contratados. Pelo menos outros 500 mil seriam mais rapidamente destravados se tivéssemos melhorias regulatórias”, diz Jorge Elias, diretor de engenharia da companhia.
A regulamentação pelo Ministério de Minas e Energia é esperada não só pela Orizon, mas por diversos elos do setor. A lei cria a obrigação de compra do combustível renovável por parte dos produtores e distribuidores do gás fóssil, o que deve garantir nova demanda aos produtores.
Os detalhes ainda estão em definição. Uma das incertezas é quanto ao percentual obrigatório já em 2026, que a princípio seria de 1%.
Gargalos
A criação de demanda é apenas um dos gargalos. A precificação das vantagens ambientais pode contribuir para o desenvolvimento do setor, diz a presidente da Abiogás, Renata Isfer.
Isso significa “separar” o atributo climático do produto. Por exemplo: uma fabricante de cerâmicas quer descarbonizar seus fornos, mas não tem um fornecedor de biometano que a atenda.
A companhia pode continuar utilizando o gás fóssil e adquirir certificados de utilização da alternativa limpa. O modelo é semelhante ao utilizado no setor elétrico e também está previsto na Lei do Combustível do Futuro.
“É importante que o atributo ambiental possa ir para quem efetivamente quer descarbonizar”, afirma Isfer.
Em São Paulo, Estado com maior potencial de geração de biometano, será necessário investir de R$ 30 bilhões a R$ 46 bilhões na produção do gás renovável, mais outros R$ 2,9 bilhões em gasodutos, segundo estudo da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).
No documento, lançado em junho, a associação industrial faz um diagnósticos dos entraves e sugere alguns caminhos para superá-los. De forma geral, afirma que há um descasamento entre oferta e demanda.
A expansão da rede de gasodutos também impõe limites ao desenvolvimento dessa nova indústria. Em muitos casos, o biometano tem de ser transportado por caminhões, o que aumenta o custo e inclui emissões de carbono na conta climática do produto.
O Brasil tem 9,7 mil km de gasodutos de transporte, que funcionam como espinha dorsal de distribuição. México e Argentina têm cerca de 18 mil km, segundo o Global Energy Monitor. Na Alemanha e na Itália, países bem menores, os dutos passam de 10 mil km.
Gasodutos
A distância até a malha de gasodutos é justamente um dos motivos para a sucroalcooleira Tereos ainda não ter começado a investir no biometano comercialmente. Com atividade no extremo noroeste de São Paulo, ela está a 100 km da conexão mais próxima.
“A construção da planta é viável comercialmente, mas o custo da distribuição por caminhão deixa esse negócio menos atrativo. Agora tivemos o anúncio de uma distribuidora para os próximos cinco anos que pode mudar o jogo”, afirma Felipe Mendes, diretor de sustentabilidade e de novos negócios da Tereos.
Ele se refere à Necta, braço da Commit, do Grupo Cosan, que atua numa área de 375 municípios sob concessão, justamente onde a cultura da cana-de-açúcar é forte.
A empresa é uma das únicas três distribuidoras que injetam o biometano ao grid de gás no Brasil. Neste ano ela foi responsável por fazer a cidade de Presidente Prudente ser 100% alimentada pelo gás gerado pela Cocal Energia.
Desde 2024 a companhia tem procurado usinas interessadas em fazer parte de um plano de expansão de sua malha. Foram 135 produtores mapeados, um potencial de 3 milhões de metros cúbicos diários. No curto prazo, 46 já demonstraram interesse, mas para começar as obras e fechar contratos a empresa está à espera ajustes regulatórios em nível estadual.
Hoje, o modelo regulatório impõe o custo da expansão da rede ao consumidor. Os dutos que ligarão as 46 fazendas somam 800 km só serão viáveis se as usinas sucroalcooleiras puderem contribuir num novo modelo de precificação dos projetos, que está sob consulta pública na Arsesp, agência estadual responsável pelo setor.
“A gente estava acostumado a expandir rede no sentido do cliente. Agora somos solicitados a nos conectar com usinas e aterros para escoar o biometano”, afirma o CEO da Necta, José Eduardo Moreira.
‘Pré-sal caipira’
Em entrevista ao Reset, a Secretária de Infraestrutura e Meio Ambiente, Natália Resende, listou uma série de iniciativas para viabilizar o que seu chefe, o governador Tarcísio de Freitas, chama de “pré-sal caipira”.
A secretaria apoia a formação de polos para chegada dos dutos da Necta e, na frente de aterros sanitários, coordena a destinação dos resíduos urbanos em um programa que formará consórcios entre os municípios, garantindo mais volume de lixo. Foram 12 formados até agora, incluindo um referente a Campinas.
A ideia é incorporar o biometano como um ativo para a gestora do aterro, que deverá obrigatoriamente explorar o gás. Segundo Resende, a ideia é garantir estabilidade de oferta do gás em caso de variações na safra da cana.
“Previsibilidade faz muita diferença, principalmente para o investidor. Eventualmente terá alguma disputa entre as fontes geradoras? Pode ser, mas pelo lado da política pública isso é bom”, afirma a secretária.
Além da produção sucroalcooleira, São Paulo concentra grandes consumidores industriais. E o Estado é cortado pelo gasoduto Gasbol, que vem da Bolívia. Assim, é necessário apenas criar braços a partir desse eixo central.
O preço
Foi o interesse do setor industrial que “puxou” primeiro a agenda do biometano, a partir de 2019. Mas a diferença de preço é relevante – o biometano tem sido negociado por mais de 10% a mais que a alternativa fóssil.
Segundo a Fiesp, metade das indústrias de São Paulo consideraria adotar o biometano apenas se o preço fosse igual ao do gás natural.
Na fabricante de fertilizantes Yara, o projeto de substituir todo o gás natural consumido na produção de amônia verde em Cubatão (SP) foi interrompido devido às altas recentes no preço.
A variação seria reflexo da Lei do Combustível do Futuro. Para cumprir o mandato da lei, que ainda não foi definido, a Petrobras se adiantou e fez uma chamada pública para o fornecimento de 700 mil metros cúbicos/dia, movimentando o setor de geração.
O setor de logística também é visto como uma potencial fonte de demanda para o gás natural renovável. Medidos por peso, mais de metade dos produtos que saem das fábricas da L’Oréal é transportada em caminhões movidos a biometano.
No Estado de São Paulo, veículos pesados que usam o combustível limpo em vez do diesel têm desconto no IPVA. Outros incentivos que poderiam estimular a demanda são a isenção em pedágios e acesso mais rápido a portos, numa espécie de fila VIP.
Na capital, a prefeitura tem planos de incluir ônibus a biometano na frota, além dos elétricos. Na comparação com os que queimam óleo diesel, esses veículos podem representar uma redução de até 95% nas emissões de carbono.
* Atualizada às 11h45 para corrigir uma informação: a Necta faz parte da Commit e não da Comgás, como publicado.
Foto: Mariana Rosetti