Quem desbrava o mercado do gás verde – e o que falta para o Brasil liderar

O país tem a matéria-prima – resíduos orgânicos – para ser um dos maiores produtores de gás renovável do mundo, mas o escoamento ainda é um desafio

Gasoduto da Petrobras; o gás renovável pode ser transportado na infraestrutura existente
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“Minha sugestão para o Brasil é: façam da bioenergia uma peça-chave [da descarbonização].” A frase foi proferida por Fatih Birol, diretor-executivo da Agência Internacional de Energia (AIE), em sua passagem pelo país no fim de janeiro.

O biometano, ou gás natural renovável, é a fonte de bioenergia que mais cresce no mundo. A agência aposta no Brasil como o quinto maior produtor mundial em 2027. 

Entre aterros sanitários e resíduos da agricultura e da pecuária, o país tem matéria-prima de sobra para transformar o metano emitido naturalmente em suas operações em um produto de mais alto valor, com aplicações variadas e potencial de contribuir com as metas climáticas das empresas e também do país.

O gás renovável é um combustível drop in, ou seja, pode substituir a alternativa de origem fóssil sem necessidade de adaptação nos equipamentos – como uma caldeira industrial ou o motor de um ônibus. Além disso, existem iniciativas para produzir querosene sustentável de aviação a partir do biometano.

Mas Birol parece ter atirado no que viu e acertado no que não viu.  Para transformar a promessa brasileira em realidade será necessário foco. Existem hoje 885 usinas de biogás em operação no país. Somente 20 são capazes de realizar a purificação que o transforma no gás verde que o mundo cobiça.

O número é ainda menor quando se trata das plantas autorizadas a comercializar o gás renovável: das 20, somente 6 possuem outorga da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), enquanto outras 15 aguardam sinal verde da agência.

A maioria das plantas de biogás queima o metano resultante da decomposição de matéria orgânica para geração de eletricidade. Os investimentos estão acontecendo. A Abiogás, entidade que reúne as empresas do setor, estima que 90 plantas produzirão biometano em 2029, com investimentos previstos de R$ 11 bilhões. 

O potencial é grande – assim como o desafio de trilhar o caminho até a demanda de residências, postos de abastecimento, termelétricas e indústrias.

Distribuição

A MDC, empresa brasileira que atua em todos os elos da cadeia industrial do gás, foi uma das pioneiras na produção de biometano no país. Sua primeira usina em escala comercial foi inaugurada em 2014, em São Pedro da Aldeia (RJ). A segunda, em Fortaleza, veio três anos depois – e ainda é a única unidade da companhia a injetar o gás renovável na rede de distribuição.

A companhia deve começar a operar a terceira planta neste semestre. O projeto, que recebeu recursos do Fundo Clima, tem investimentos de R$ 115 milhões e fica no terceiro maior aterro do mundo, em Caieiras, na região metropolitana de São Paulo.

O empreendimento mostra o desafio do escoamento nessa indústria nascente. A empresa chegou a negociar a conexão da fábrica à rede da Comgás, distribuidora paulistana do Grupo Cosan, mas o negócio não avançou por incertezas regulatórias de como funcionaria a injeção de biometano nas redes estaduais. No momento, Caieiras tem um contrato de 15 anos com a Ultragaz para entrega via modal rodoviário.

Os 9.486 mil km de gasodutos de transporte no Brasil são pouco diante do tamanho do território. Por outro lado, boa parte das matérias-primas do gás renovável já estão “interiorizadas”, diz Manuela Kayath, presidente da MDC.

Comprimido ou liquefeito, o combustível pode ser transportado por caminhões em distâncias de até 400 km e ainda assim ser economicamente viável. Esse tem sido o modelo que sustenta a expansão da Gás Verde.

A empresa, parte do grupo Urca Energia, é a maior produtora de biometano da América Latina. A companhia processa diariamente mais de 1 milhão de m³/dia de biogás em seis Estados, e a meta é fazer o processamento de metade desse volume até 2026, com a atualização de dez usinas.

Os clientes da Gás Verde incluem uma planta da Ambev em Cachoeira de Macacu (RJ), a primeira fábrica de cerveja do país a rodar 100% com gás renovável, e uma unidade da Quartzolit, do grupo francês Saint-Gobain, em Queimados, também no Rio.

No fim do ano passado, a companhia fechou contrato para fornecer biometano para 100% dos caminhões que vão da fábrica ao centro de distribuição do grupo L’Oreal, com o primeiro posto de abastecimento do país dedicado ao gás renovável.

O interesse dos grandes

O gás renovável também chama a atenção de gigantes do setor energético. Em 2022, a Vibra Energia (ex-BR Distribuidora) adquiriu por R$ 160 milhões 50% da ZEG Biogás. A empresa tem um modelo flexível, que vai da construção e manutenção de plantas até a operação e comercialização do biometano.

A ZEG construiu uma usina no interior de São Paulo que abastece uma indústria química e uma fábrica de vidros. No segundo semestre deste ano, o plano é inaugurar uma unidade em Minas Gerais, que vai utilizar como matéria-prima a vinhaça, um subproduto da produção de açúcar e etanol.

Os clientes também devem ser indústrias, mas a empresa está de olho em outro segmento com potencial no futuro: o transporte pesado. “Existe um interesse crescente em entrar no mercado de truck centers e abastecimento de frotas”, diz Eduardo Acquaviva, CEO da ZEG.

A frota de caminhões e ônibus movidos a gás natural veicular ainda é pequena, mas a sueca Scania aposta nesse combustível como uma das rotas de descarbonização das ruas e estradas.

A empresa já fabricava caminhões movidos a GNV e lançou em julho do ano passado o X-gas, modelo com autonomia de 900 km. A montadora também realizou em Londrina, no Paraná, o primeiro teste de um ônibus 100% abastecido com biometano, em parceria com a Companhia Paranaense de Gás.

A criação de “corredores azuis” – rotas com pontos de abastecimento de biometano – é um dos pleitos da Abiogás para estimular o consumo do novo combustível. 

“O biometano já é produzido no interior do país, então é mais fácil disseminá-lo em larga escala nas estradas brasileiras do que o GNV (Gás Natural Veicular), que é processado mais perto do litoral” diz Renata Isfer, presidente executiva da entidade.

Nos céus

Outra desbravadora do mercado brasileiro de biogás e biometano, a Geo Biogás&Carbon tem três usinas em operação e cinco em implantação. Com a Raízen, uma das maiores produtoras de etanol do país, a empresa opera no interior paulista uma usina que vai vender o gás renovável para a geração de eletricidade em termelétricas.

Mas é a unidade da cidade de Elias Fausto, também em São Paulo, em que a companhia pretende começar um teste mais ambicioso: usar o gás renovável para produzir SAF (combustível sustentável de aviação) usando uma rota tecnológica que converte o insumo em petróleo cru sintético.

“Nós estamos fazendo a primeira planta brasileira em escala de demonstração para produzir 100 mil litros/ANO de SAF”, diz Alessandro Gardemann, CEO da GEO Biogás&Carbon.

A empresa ainda não fechou contratos de comercialização, mas a expectativa é que a demanda por SAF – que pode ser produzido a partir de diversas fontes, como combustíveis de origem vegetal – cresça exponencialmente nesta década, pois não há outra maneira de reduzir o impacto climático da aviação. “Não faltará mercado”, diz Gardemann.

Promessa x realidade

Apesar da promessa, a produção de gás renovável no país ainda é pequena. Segundo a Abiogás, são cerca de 390 mil metros cúbicos por dia – o consumo de uma única fábrica de amônia da Yara Fertilizantes é de  700 mil metros cúbicos de gás natural de origem fóssil.

Matéria-prima não falta para aumentar esse volume. Na projeção da Abiogás, o potencial produtivo do biometano no Brasil é de 120 milhões m³/dia, dos quais 57,6 milhões de m³ estão no setor sucroenergético, 38 milhões de m³/dia na indústria de proteína animal, 18,2 milhões de m³/dia na agricultura e 6,1 milhões de m³/dia no saneamento / resíduos.

Segundo Gabriel Kropsch, conselheiro da entidade, apesar da maior disponibilidade no meio rural, o salto inicial deve vir dos aterros sanitários, onde os investimentos para coleta e tratamento dos resíduos já foram feitos.

“É mais rápido, barato e fácil produzir o energético nesses locais”, afirma ele. “Basta apenas implantar purificadores para extrair o biometano. Por isso, os aterros estão um passo à frente.”

No campo, a promessa do gás renovável deu origem à expressão “pré-sal caipira”.

Mas o momento é de reavaliação. A Raízen anunciou em 2022 planos ambiciosos para produzir o gás renovável em todas as suas 35 usinas sucroacooleiras num prazo de dez anos, por meio de uma joint-venture com a Geo Biogás&Carbon.

Desde meados do ano passado, porém, a ordem é primeiro buscar contratos. A empresa espera começar a operação de sua segunda unidade em Piracicaba, interior de São Paulo, mas novos passos serão dados em conjunto com a produção do etanol de segunda geração (E2G).

A ideia é utilizar a vinhaça resultante da fabricação do E2G como insumo para o biometano. Além das duas já em atividade, a empresa planeja inaugurar outras três ainda em 2024.

“O mercado [do gás renovável] é muito incipiente, então estamos com uma velocidade mais devagar”, afirmou o CEO da Raízen, Ricardo Mussa, na semana passada.