Até 2032 todos os bois brasileiros deverão ter um brinco. O acessório será usado para rastrear por onde cada animal passou do nascimento ao seu abate. O sistema de brincagem, como é conhecido, será obrigatório no Brasil para fins sanitários, mas deve ajudar a avançar também em outra frente: no combate ao desmatamento.
A rastreabilidade obrigatória faz parte do Plano Nacional de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (PNIB), lançado nesta terça-feira (17) pelo governo federal. A ideia é que o programa registre o histórico, a localização e a trajetória de cada animal, gerando uma documentação individual, que foi apelidada de “RG do boi”.
O principal objetivo é sanitário, para aumentar a capacidade de resposta a surtos epidemiológicos e cumprir os requisitos exigidos pelos mercados internacionais. Mas sabendo por onde o boi pastou, o sistema será capaz de cruzar dados e saber se ele é proveniente de área de desmatamento.
“Com brinco, sabemos exatamente por quais fazendas o gado passou. Até agora, para classificar um produto como associado a desmatamento, só era possível dizer se existia um risco, não uma certeza”, diz Marina Guyot, gerente de políticas públicas do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora).
Existe uma expectativa de organizações da sociedade civil de que os dados de rastreabilidade sanitária sejam usados também para o combate ao desmatamento, uma vez que devem ser integrados à outra iniciativa do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), a Plataforma Agro Brasil + Sustentável.
Anunciada em janeiro deste ano, a plataforma vai disponibilizar dados públicos organizados e rastreáveis relacionados à produção rural do país. Ele deve trazer indicadores da sustentabilidade exigidos pelo mercado externo, como conformidade ambiental, qualificação da produção e uso da terra, com cruzamento de dados com o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Diferentemente da política de rastreabilidade sanitária, porém, a adesão à plataforma será voluntária pelos produtores.
O lançamento oficial da plataforma será nesta quinta-feira (19), segundo convite do Mapa distribuído ao setor, e tem como um de seus objetivos ser uma solução para o setor exportador às exigências da lei antidesmatamento da União Europeia (UE), que teve sua entrada em vigor adiada para 2026.
Implementação
A implementação da brincagem será gradual, terá quatro fases e durará oito anos.
“Um plano para expandir a rastreabilidade para todos os bois, em todo o território nacional, não dá para fazer de um dia para outro. A pecuária tem uma cadeia muito pulverizada e será preciso de um tempo de adaptação e incentivos ao pequeno produtor”, diz Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec).
O país tem 238 milhões de cabeças de boi, segundo a última Pesquisa de Pecuária Municipal, do IBGE, de 2023.
De acordo com o Mapa, a primeira fase será realizada ao longo de 2025 e será dedicada ao desenvolvimento da base de dados e do sistema informatizado que fará a gestão e controle do programa.
Na segunda fase, em 2026, Estados e seus órgãos de sanidade agropecuária adequarão seus sistemas para se conectar ao sistema nacional.
“Dessa forma, torna-se eficiente a troca de informações entre autoridades regulatórias, produtores e outros stakeholders, assegurando que todos os envolvidos tenham acesso aos dados necessários para a gestão e o controle efetivos”, diz o documento da política ao qual o Reset teve acesso – até o fechamento desta reportagem ele não estava disponível no site do Mapa.
A partir de 2027, a rastreabilidade começa a ser obrigatória de forma gradual para os produtores, até ser mandatória para todo o rebanho até o fim de 2032. A primeira exigência será colocar brinco em animais submetidos a vacinas obrigatórias estabelecidas pelo Mapa. Em 2032, todos os animais que transitem em território nacional precisam ser rastreados a partir da primeira movimentação (transporte entre fazendas ou para o frigorífico).
Alguns Estados saíram na frente e já lançaram seus próprios programas de rastreabilidade, entre eles Pará, São Paulo e Santa Catarina.
Brincagem
Atualmente, o Brasil adota um sistema de rastreabilidade de bovinos em lotes de animais. No transporte, o produtor emite uma Guia de Trânsito Animal (GTA) informando quantos bois estão saindo da fazenda. Emitidas pelas agências estaduais de controle sanitário animal, elas contêm as informações sanitárias e de origem dos animais daquele lote.
O avanço da nova política é a identificação obrigatória de forma individual.
A política determina quatro formas de identificação dos animais: (1) um brinco auricular eletrônico do tipo bandeira; (2) um button auricular eletrônico; (3) um brinco em uma das orelhas e um button, sendo pelo menos um deles eletrônico; e (4) um brinco auricular e em uma das orelhas e um button na outra quando ambos não possuírem dispositivo eletrônico.
O documento estabelece um “padrão PNIB”, em que o elemento de identificação será confeccionado na cor amarela e deve ser inviolável, impossibilitando a sua reutilização. Cada um deles terá uma numeração no padrão ISO, uma sequência numérica única de 12 dígitos, que deverá ser visual tanto no brinco bandeira como no botton, que será gerada pela base de dados nacional.
A base de dados vai coletar os seguintes dados de cada animal: espécie, sexo, data de nascimento (mês e ano), data de registro na Base Central de Dados (será gerada automaticamente pelo sistema), data da identificação, data da baixa no sistema informatizado, se o animal é importado ou não, e se é nascido ou não na propriedade onde ocorreu a identificação.
A partir da movimentação, serão registrados no sistema dados de origem e de destino, espécie e datas de emissão e vencimento da Guia de Trânsito Animal. Os dados de trânsito poderão ser inseridos no sistema tanto pela origem quanto pelo destino.
Os dados dos produtores também serão coletados: nome completo, CPF ou CNPJ, e as propriedades a eles vinculadas. No caso das propriedades, o sistema vai armazenar o nome, código do estabelecimento ou da exploração pecuária fornecido pelo órgão executor de sanidade agropecuária, geolocalização, município e unidade federativa.
Esse sistema de brincagem é parecido com o adotado no Sistema Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia de Bovinos e Bubalinos (Sisbov), criado em 2002 para atender às exigências do mercado externo, mas com adoção voluntária, não obrigatória.
“Isso traz uma demanda de investimento para o produtor. Por exemplo, se eu quero fazer uma brincagem eletrônica, tenho que ter balança eletrônica, um curral adequado para esse manejo ser eficiente”, diz Fábio Ramos, diretor da consultoria Agrosuisse. Ele diz que também será necessário treinar e capacitar os vaqueiros, além de ter uma pessoa treinada para enviar os dados para o sistema nacional.
O custo da brincagem varia de acordo com a escala. Em um rebanho de 5.000 animais, o custo representa em média 0,40% da receita individual do animal. Para 50 animais, este valor aumenta para aproximadamente 1%, segundo o estudo “Rastreabilidade da cadeia da carne bovina no Brasil”, da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, realizado pela Agrosuisse.
“Em vista desse custo e das dificuldades explícitas para os pequenos e médios pecuaristas, o governo deveria se manifestar para conceder um suporte a estes produtores e tentar minimizar esses impactos nas suas rendas”, diz o estudo.
Desmatamento
A política de rastreabilidade foi considerada por ambientalistas um movimento importante da pecuária. O último passo relevante para a questão ambiental do setor, a implementação do Sisbov há 20 anos, acabou tendo impacto limitado, com apenas 1.123 fazendas cadastradas no sistema de rastreabilidade voluntário.
“Na ocasião que lançaram o Sisbov, a questão ambiental estava totalmente sem força para influenciar a exigência de rastreabilidade para o Brasil inteiro. No mercado externo as pressões ambientais já existiam, mas o Brasil não exigia isso internamente”, lembra Ramos, da Agrossuise.
O Brasil é o maior exportador de carne bovina do mundo, mas a maior parte da produção ainda é para consumo interno. Isso faz com que as exigências ambientais do mercado externo presssionem o setor, mas o que faz mover o ponteiro é mesmo a legislação local e a aderência dos grandes frigoríficos, que compram o boi dos produtores.
Procurados para comentar a política obrigatória de rastreabilidade, os frigoríficos JBS e Minerva não responderam ao pedido de entrevista. A Marfrig informou que, nesse primeiro momento, a Abiec irá se posicionar em nome do setor.
Em nota sobre o programa, a associação destacou que ele representa um avanço significativo na defesa agropecuária do país, ao garantir um melhor controle da qualidade e segurança alimentar, e, consequentemente, potencializando a abertura de novos mercados e a manutenção dos já existentes para a carne brasileira.
“O programa de rastreabilidade colabora com a redução do desmatamento, mas precisa vir acompanhado de um pacote, com ordenamento territorial agrário, titulação de terra e o setor financeiro com políticas para beneficiar quem não quer desmatar”, diz Ramos, da Agrosuisse. “Se o pacote não vier maior, talvez o efeito do plano sobre o desmatamento não seja relevante.”
Do lado dos bancos, a Federação Nacional dos Bancos (Febraban) desenvolveu, na forma de autorregulação, um normativo para gestão de risco de desmatamento ilegal na cadeia de carne bovina. Ele estabelece diretrizes para que as instituições financeiras signatárias promovam, em suas operações de crédito com frigoríficos, atividades que sejam livres de desmatamento ilegal.
Os 24 bancos signatários, entre eles os grandes do setor, devem solicitar aos seus clientes frigoríficos, na Amazônia Legal e no Maranhão, a implementação de um sistema de rastreabilidade e monitoramento que permita demonstrar, até dezembro de 2025, a não aquisição de gado associado ao desmatamento ilegal de fornecedores diretos e indiretos.
Uma das inovações do protocolo foi justamente exigir o rastreamento da cadeia, não só do fornecedor direto do frigorífico. “É importante dar um passo além, com exigências para promover uma contribuição e uma mudança. Nos inspiramos em boas práticas de programas e inovamos ao exigir também o monitoramento dos fornecedores indiretos no primeiro nível”, diz Amaury Oliva, diretor de sustentabilidade e autorregulação da Febraban.