Desertificação avança em todo o planeta, aponta estudo da ONU

Três quartos do solo estão ameaçados por degradação permanente; conferência da desertificação, a ‘prima pobre’ das COPs, acontece em Riad

Desertificação avança em todo o planeta, aponta estudo da ONU
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Mais de três quartos das terras do planeta estão se tornando mais secas de forma permanente, segundo um novo estudo divulgado por um painel de cientistas reunido pela ONU.

Entre 1990 e 2020,  houve um incremento de 4,3 milhões de quilômetros quadrados das áreas em degradação, ou o equivalente ao território da Índia, sétimo maior país do mundo.

O Nordeste brasileiro, o Meio Oeste americano e os países do Mediterrâneo estão entre as regiões que devem ver transformação em seus ecossistemas, com graves consequências para a biodiversidade e a vida humana.

O alerta é parte do estudo “A Ameaça Global das Terras que Secam”, divulgado nesta segunda-feira durante a 16ª COP da Desertificação, em Riad, na Arábia Saudita.

A conferência trata da Convenção de Combate à Desertificação (CCD), firmada na Rio-92 junto com a do clima e a da diversidade biológica. A CCD é o menos conhecido dos três tratados da ONU, mas o agravamento da emergência climática trouxe um nível de atenção inédito para a “COP do solo”.

O objetivo da conferência, que termina nesta sexta-feira, é conter e reverter a degradação de terras, que atinge 1,2 bilhão de pessoas e se expande a um ritmo anual de 100 milhões de hectares, ou três vezes o total da área cultivada do Brasil.  

Mais que secas

“Pela primeira vez, a crise da aridização foi documentada com clareza científica, apontando uma ameaça existencial afetando bilhões no mundo inteiro”, afirmou o secretário-executivo da CCD, Ibrahim Thiaw, sobre o estudo.

Secas podem ser prolongadas, mas têm fim. A aridização indica uma transformação permanente. “Essa mudança está redefinindo a vida na Terra”, diz Thiaw.

O fenômeno é medido ao longo de décadas e leva em conta a quantidade de chuvas e a evapotranspiração local. A relação entre esses dois números resulta no índice de aridez, uma métrica que pode ser usada universalmente.

Não se trata de um indicador perfeito, pois a degradação do solo depende de outros fatores, como condições hidrológicas e a ação humana – particularmente a destruição de vegetação nativa e agropecuária.

Mas está estabelecido que o problema avança globalmente, e o principal impulsionador é a mudança nas condições climáticas que resulta das emissões de gases estufa.

Deserto brasileiro

A primeira área árida do Brasil foi identificada no fim de 2023 no norte do sertão baiano, em nota técnica do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais) e do Inpe (Instituto de Pesquisas Espaciais).

Um estudo publicado em abril apontou uma extensão ainda maior: 282 mil quilômetros quadrados de terras áridas no país, uma extensão maior que o Estado de São Paulo. Elas se concentram no interior de Bahia, Pernambuco, Paraíba e Piauí.

O trabalho foi realizado por Humberto Barbosa, meteorologista e coordenador do Laboratório de Processamento de Imagens de Satélite da Universidade Federal de Alagoas.  

Classificações técnicas precisas podem levar anos, mas a realidade é evidente hoje, diz Ana Paula Cunha, pesquisadora do Cemaden.

“Estamos vendo secas cada vez mais recorrentes e duradouras. O índice de aridez está aumentando no país inteiro. Isso acelera o processo de aridização e o que vem depois, que é a desertificação.”

O impacto se manifesta de inúmeras maneiras, incluindo na economia, com atenção particular para duas atividades: geração de energia e agricultura.

As causas podem ser as mesmas de eventos extremos como as enchentes do Rio Grande do Sul, mas a aridização tem uma característica que a torna um problema mais difícil de perceber: trata-se de uma mudança gradual e silenciosa.

Juntos, mas separados

A ligação entre os temas das três convenções da ONU – natureza, clima e solo – é óbvia, mas as agendas caminham em velocidades diferentes.

As COPs do clima já estabeleceram um arcabouço abrangente, que vai de planos nacionais de redução das emissões de carbono a um mecanismo de reparação financeira para perdas financeiras sofridas pelos países mais vulneráveis.

As discussões internacionais sobre a natureza também estão num nível muito mais avançado que as de desertificação.

Há dois anos, quase 200 países concordaram com um Marco Global da Biodiversidade, que inclui 23 metas objetivas para interromper e reverter a perda da natureza.

Um dos desafios da conferência que acontece na Arábia Saudita é muito anterior: estabelecer parâmetros e metodologias comuns que possam servir de base para algo parecido.

O financiamento

E, é claro, existe a questão dos recursos.

Como financiar as ações necessárias nos países do Sul Global – os mais atingidos pelo problema da desertificação, particularmente os da África – é um dos assuntos que dominam as negociações em Riad.

Em outubro, o tema do financiamento causou a suspensão da conferência da biodiversidade, na Colômbia (as discussões serão retomadas em Roma, em fevereiro).

E a COP do Clima, no Azerbaijão, foi encerrada com um resultado considerado insuficiente para que o mundo consiga lidar com a emergência do clima na escala e na velocidade necessárias a fim de evitar um agravamento da crise.

Na abertura da COP de Riad, a CCD divulgou pela primeira vez uma estimativa do custo da restauração e da contenção dos desertos: pelo menos US$ 2,6 trilhões até o fim da década.

Esse é o total estimado para que se interrompa a espiral de degradação dos solos que “mina a capacidade do planeta de sustentar a humanidade”, segundo a ONU.  

“Não estamos falando de caridade”, disse Thiaw, o secretário-geral da CCD, à Reuters. “Não podemos ver [esses investimentos] como algo para os pobres africanos, mas um investimento que vai manter o mundo em equilíbrio.”

Thiaw argumenta que as três grandes convenções da ONU sobre o meio ambiente são interdependentes.

A agricultura, um dos principais motores da degradação dos solos, é responsável por 23% das emissões globais de carbono, 80% da perda de vegetação nativa e 70% do consumo de água doce.

Ao mesmo tempo, a aridização é a maior responsável pelos impactos na agricultura global. Estima-se que 40% das terras cultiváveis do planeta já sejam afetadas pelo fenômeno.

Compromissos voluntários assumidos por vários países – incluindo o Brasil, que recentemente anunciou uma nova versão de seu plano de recuperação de vegetação, o Planaveg –  somam 900 milhões de hectares. O mundo precisaria almejar 1,5 bilhão de hectares, com mecanismos vinculantes e metas acordadas globalmente e meios de financiamento para os países mais pobres e vulneráveis.