Depois de vencer a maior licitação para fornecimento de canabidiol via SUS, a mineira Ease Labs, uma das maiores farmacêuticas do país focada em canabinoides, foi às compras na Colômbia, onde passa a cultivar também a planta. As regras da Anvisa permitem a fabricação de produtos à base de cannabis no país e, com a devida autorização, eles podem ser vendidos em farmácias. Mas o cultivo da planta ainda é proibido em solo brasileiro.
De olho no crescente mercado de cannabis medicinal no Brasil, a companhia fechou mês passado a aquisição da Plena Colômbia, dedicada ao cultivo e extração de cannabis em Nemocón, região metropolitana de Bogotá.
“A gente passa a dominar toda a produção, da semente até o produto na prateleira”, diz Gustavo Palhares, CEO e um dos fundadores da Ease Labs. Ele calcula que a transação gere uma redução de R$ 190 milhões em custos, nos próximos dez anos.
Palhares não revela o valor do negócio. A farmacêutica captou R$ 40 milhões no último ano: R$ 15 milhões em uma linha de venture debt com a BB Asset e o restante com os fundos de capital de risco Airborne, Bullside, L5 Capital e MadFish, do ex-tenista profissional Bruno Soares.
Venda para o SUS
A decisão de comprar a Plena veio meses depois de a Ease Labs ganhar, em dezembro de 2023, a maior licitação do Brasil para produtos à base de cannabis destinados à saúde pública. A farmacêutica fornece ao governo de São Paulo frascos de canabidiol isolado (quando há apenas o canabidiol na composição) distribuídos no Estado pelo SUS.
O governador Tarcísio de Freitas sancionou em janeiro de 2023 uma lei que garante o fornecimento gratuito do canabidiol para o tratamento de três patologias: síndrome de Dravet, síndrome de Lennox-Gastaut e esclerose tuberosa, todas condições raras, incuráveis e resistentes às medicações tradicionais. Já existem diversos estudos que comprovam a eficácia do uso do canabidiol e de outros canabinoides para melhorar a qualidade de vida desses pacientes.
Antes disso, o Estado fornecia o medicamento a pacientes que conseguiam na Justiça o direito de recebê-lo gratuitamente, mas pagava por ele o valor de varejo, cerca de dez vezes superior ao do contrato com a Ease.
A distribuição começou efetivamente em junho passado. Segundo a Coordenadoria de Assistência Farmacêutica (CAF) do Estado de São Paulo, até setembro haviam sido entregues 389 frascos a 71 pacientes cadastrados.
“Ainda é a pontinha de um iceberg. Tem de haver abertura para mais patologias no futuro, e acreditamos que isso vai acontecer logo”, diz Palhares.
Contratos com o Sistema Único de Saúde são uma das apostas da Ease Labs, segundo o fundador. A companhia participa de licitações em várias regiões do país e recentemente venceu um certame em Sergipe. “Nossa meta é ser fornecedor exclusivo no maior número de estados”, afirma ele.
THC na fórmula
O canabidiol isolado foi o primeiro lançamento da Ease Labs e chegou às farmácias em fevereiro de 2023.
Também conhecido pela sigla CBD, o canabidiol é uma das substâncias com aplicações médicas derivadas da cannabis. O CBD não tem as propriedades psicoativas comumente associadas ao uso recreativo da maconha, que vêm principalmente do THC.
Há cerca de dois meses, a startup lançou um segundo produto: o extrato de canabidiol full spectrum. Ele é uma versão mais potente e com melhor resultado para diversas patologias. Além do CBD, ele tem THC (menos de 0,2%) e outros fitocanabinóides, como CBG e CBN.
Foi o primeiro extrato full spectrum com aprovação da Anvisa fabricado integralmente no Brasil. “Isso permitiu que nosso preço final fosse extremamente competitivo, cerca de 70% menor que os importados”, diz Palhares.
Ele e o sócio Guilherme Franco, com quem divide as funções de CEO, criaram a Ease Labs em 2018 apostando justamente nesse movimento: a regulamentação da cannabis para o uso no tratamento de doenças.
“Desde o início trabalhamos para ter todas as autorizações e certificações para manipular uma substância de controle especial. A Anvisa sempre deixou claro que exigiria comprovação de segurança e eficácia, e ela é o principal stakeholder desse mercado. Seguimos o caminho da ciência.”
Ele cita a aquisição da colombiana Plena como um exemplo. Em uma área de quase 300 mil metros quadrados, a companhia planta 510 variedades distintas. O cultivo e a extração têm certificado de conformidade com as normas exigidas pela União Europeia.
Um novo mercado
“A gente precisava comprovar a segurança da nossa cadeia de suprimentos”, explica o co-CEO. “O modelo farmacêutico, baseado na ciência, traz autoridade e destrava o acesso aos insumos de forma mais constante e com maior segurança jurídica.”
Os dois empreendedores mineiros contaram, também, com o imenso potencial do mercado brasileiro de cannabis medicinal. Ele cresceu cerca de 200% no primeiro trimestre deste ano, comparado ao mesmo período de 2023, com um faturamento de R$ 163,7 milhões. Os dados são da Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides (BRCann).
Apenas em farmácias, foram vendidos 417,6 mil frascos de canabidiol, um aumento de 151%. É um avanço ainda pequeno, perto dos potenciais 6,9 milhões de brasileiros receptivos às terapias com cannabis medicinal, segundo a Kaya Mind, startup especializada em dados e inteligência de mercado no segmento.
A quantidade de médicos prescritores de canabidiol também cresceu. “Três anos atrás havia 1.500 habilitados para a prescrição, hoje são mais de 45 mil”, diz Palhares. Cerca de 600 mil médicos prescrevem remédios no país. O co-CEO estima que pelo menos um quarto desse total tenha potencial para indicar cannabis a seus pacientes.
O ecossistema da cannabis
Palhares e Franco acreditam que o crescimento do mercado também depende de incentivos à produção científica – dentro e fora da startup.
Em 2022, a Ease Labs havia comprado outra empresa, a farmoquímica Catedral. Rebatizada de Semeya, dedica-se à pesquisa e desenvolvimento genético de insumos fitoterápicos e opera como um dos braços do Ease Labs Group.
Há pouco mais de um ano, a companhia lançou o PACCE (Programa de Aceleração de Conhecimento Canabinoide Ease), voltado à comunidade médica e a instituições de pesquisa. Oito projetos estão inscritos, e dois, em andamento.
Um deles acontece no Hospital das Clínicas da USP Ribeirão Preto, sobre a ação do canabidiol no tratamento de AVC agudo. Outro, do InCor, Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP, visa avaliar o uso do canabidiol na reabilitação da função cognitiva em pacientes que tiveram COVID-19.
Em paralelo, Palhares afirma ser necessário regulamentar e liberar o plantio no Brasil. “Isso permitirá que o país seja o maior celeiro de desenvolvimento de ciência e comprovação de eficácia de diversos canabinoides.”
“Mas isso não quer dizer que a gente não consiga um modelo viável e um produto a preço justo para o paciente, sem esses avanços. É o que temos feito.”