Na concordata da Avon, Natura busca blindagem em processos por câncer

Companhia nos EUA pediu recuperação judicial para resolver dívida de US$ 1,3 bi e indenizações a consumidores

A Avon Products, comprada pela Natura em 2020, enfrenta processos judiciais de clientes que desenvolveram câncer
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Ao optar por colocar a Avon em recuperação judicial nos Estados Unidos, a Natura pretende levar para dentro do processo consumidores que acionaram a empresa na Justiça americana por terem desenvolvido câncer e que têm indenizações a receber. O recurso tem sido usado por outras empresas nos EUA para limitar o impacto financeiro desse tipo de processo.

A Avon Products Inc, subsidiária da Natura &Co, anunciou no último dia 12 de agosto que acionou o Capítulo 11 (Chapter 11) da Lei de Falências dos Estados Unidos, que permite uma reestruturação financeira sem a cobrança de credores, equivalente à recuperação judicial no Brasil, “para resolver sua dívida e passivos legados de talco”. 

O passivo de talco é resultado de um volume crescente de processos judiciais movidos por pessoas que alegam ter desenvolvido câncer ao usar produtos da Avon que continham talco contaminado por amianto em sua composição, como cosméticos.

A empresa nega a contaminação e deixou de comercializar os produtos com o talco em 2016, antes, portanto, da aquisição de parte dos negócios pela Natura.  

“A operação é uma sacada de mestre do ponto de vista financeiro, mas ruim da perspectiva de responsabilidade social ao dragar pessoas com câncer para dentro de uma massa quase falida”, diz uma analista de ações que pediu para não ser identificada. 

Os dois casos em que a Avon foi condenada até agora foram abertos por consumidoras que desenvolveram mesotelioma, um câncer especificamente relacionado à exposição ao amianto, que atinge o mesotélio, membrana do interior das paredes torácica e abdominal. 

No caso intitulado Chapman versus Avon, de 2022, a indenização definida pelo júri foi de US$ 46,3 milhões. No caso Ramirez versus Avon foram definidos US$ 24,5 milhões em compensação de danos. A companhia está recorrendo de ambas as decisões. 

Mas novos casos não param de aparecer. Até o fim de junho, havia 429 processos individuais contra a Avon relacionados ao talco. Desses, 79 eram casos iniciados no primeiro semestre deste ano, segundo as notas explicativas das demonstrações contábeis da Natura. 

Questionada pelo Reset, a Natura diz que o mérito dessas ações judiciais é contestado pela Avon e que a segurança de seus produtos foi atestada por estudos e entidades regulatórias e científicas. “Não há nenhuma decisão final contra a API [Avon Products Inc]. Se algum direito for reconhecido pelas cortes, ele será tratado no âmbito do Chapter 11”.

Na nota enviada à reportagem, a companhia explica que a decisão de iniciar o Chapter 11 foi tomada pela Avon e seu conselho de administração a partir da avaliação de que esta seria a maneira mais adequada e eficaz de tratar suas dívidas e passivos, incluindo aqueles relacionados aos casos do talco. 

Acordo oferecido

A Avon propôs um acordo de US$ 30 milhões para o conjunto de litigantes de talco no plano apresentado à Justiça americana. Considerando o valor individual das causas ganhas pelas duas consumidoras, o acordo representaria um ‘haircut’ significativo. 

“Ninguém está se eximindo da responsabilidade. Mas recorrer ao Chapter 11 é um meio legítimo, legal e amplamente reconhecido”, diz uma pessoa ligada à companhia.

O pedido de concordata da Avon ainda precisa ser analisado pelo Tribunal de Falências do Distrito de Delaware, onde a solicitação foi feita. Se aprovado, nenhuma nova ação poderá ser aberta contra a empresa enquanto durar a recuperação judicial, impedindo a fila de processos de crescer.

Para os processos já abertos, os reclamantes poderão se tornar credores com potencial de terem suas indenizações reduzidas. Se esse for o caso, terão direito a votar na assembleia de credores.

“Embora os reclamantes de talco possam contestar o valor do acordo, observamos que, se tomarmos a J&J [Johnson & Johnson, que enfrenta processos similares] como referência, o acordo seria de aproximadamente US$ 50 milhões [para o conjunto de reclamantes]”, diz relatório da XP intitulado “Um capítulo inesperado de simplificação corporativa”. 

Se a Natura não concordar com um valor maior que os US$ 30 milhões, ela poderá optar por um Chapter 7, no qual os litigantes poderiam ficar sem nada, observam os analistas da XP. Esse capítulo da lei americana equivale a uma  decretação de falência, com a liquidação de todos os ativos. 

De acordo com o Wall Street Journal, os processos de talco já custaram US$ 225 milhões – ou R$ 1,3 bilhão – à companhia em acordos de defesa e litígio desde 2010, quando o primeiro caso chegou aos tribunais. 

‘Sacada de mestre’

A recuperação judicial resolve dois problemas da Natura, se aprovada. 

O primeiro é o passivo do talco. Uma vez sob as regras do Chapter 11, a Avon Products passa a ser controlada pela corte americana, saindo debaixo da aba da Natura&Co. Segundo analistas, a maior parte dos passivos cíveis do balanço da Natura hoje se refere aos casos do talco. Ele cresceu 28% no primeiro semestre, para R$ 317 milhões, segundo as demonstrações contábeis da companhia. 

Além disso, a companhia pode se livrar de operações não rentáveis da subsidiária, com mais chances de reestruturar a parte boa dos negócios.

Isso porque, sob a proteção judicial, os ativos da Avon International, quase 40 operações espalhadas pelo mundo que estão sob a holding Avon Products e que não fariam parte da recuperação judicial, podem ser colocados à venda em um leilão supervisionado pela Justiça. E a Natura pode recomprar apenas aqueles que lhe interessam. 

E, melhor, sem ter que colocar dinheiro novo na mesa. A Natura informou que fará uma oferta de US$ 125 milhões pelos ativos estrangeiros da Avon no processo de concordata, em que pretende usar créditos que tem contra a subsidiária. A Natura é a maior credora da Avon Products, que deve US$ 530 milhões à brasileira (sua dívida total é de US$ 1,3 bilhão). 

Além disso, a companhia vai fornecer um financiamento de US$ 43 milhões para a subsidiária continuar operando durante o processo de recuperação, que será abatido do valor da oferta. 

Passivo sem ativo

A Avon Products é uma holding americana, por isso pode recorrer ao Chapter 11, e tem sob seu guarda-chuva a Avon International, com atuação em países da Europa, Oriente Médio, África e Ásia. 

Quando comprou a empresa em 2020, a Natura integrou à sua operação os ativos da América Latina (o que inclui o Brasil) e que, por isso, não fazem parte da recuperação judicial. 

A operação da Avon nos Estados Unidos ficou de fora da compra da Natura, pois havia sido vendida para o grupo sul-coreano LG Household & Health Care meses antes, em 2019. 

O passivo das ações judiciais do talco vindas da operação americana, porém, ficou de fora do acordo com a LG Household e foi mantido na holding vendida à Natura. 

“A due diligence na época da venda parece não ter sido bem feita e não se preocuparam em separar recursos para cuidar de uma contingência sensível”, diz um analista sob condição de anonimato. 

Na nota enviada ao Reset, a Natura diz que a aquisição da holding foi uma condição para que o negócio fosse concluído. 

“A Natura &Co estava ciente do que foi divulgado na época. Assim como hoje, a API não via mérito nessas ações, que eram em número muito menor”, diz o texto. 

Operação mais simples

“Se aprovado [o pedido de Chapter 11], a Natura deverá emergir com um balanço mais leve e um negócio muito mais limpo”, avaliam os analistas da XP no relatório. 

Ao engrenar uma sequência de aquisições de marcas internacionais de produtos de beleza – primeiro Aesop, depois The Body Shop e por fim a gigantesca Avon –, a Natura vendeu ao mercado a ideia de que se transformaria numa versão brasileira da francesa L’Oréal, ou seja, uma plataforma global com várias marcas. 

Criou, assim, a holding Natura &CO, com números grandiosos. 

Os resultados, porém, não vieram como o esperado e agora a companhia ruma para simplificar a operação. A Natura  abandonou a estrutura de plataforma global e vendeu as marcas The Body Shop e Aseop em 2023 e, com isso, conseguiu reduzir sua alavancagem. Agora tenta reduzir as perdas com a Avon. 

A Natura &Co apresentou prejuízo de R$ 859 milhões no segundo trimestre deste ano, perda 17% maior que no mesmo período de 2023, com a maior parte deste impacto relacionado à reestruturação da Avon.

Segundo a companhia brasileira, o prejuízo veio com a contabilização de R$ 725 milhões gerados pela “reestruturação voluntária da API [Avon Products Inc.], que torna improvável continuar a reconhecer os ganhos obtidos com a otimização da estrutura corporativa da Avon, originalmente contabilizados no segundo trimestre de 2021”.

Não fosse por isso, a companhia teria registrado lucro de R$ 162 milhões no trimestre.

O que está por vir

O plano apresentado pela Avon à Justiça americana tem até o dia primeiro de outubro para receber contestações. No dia 15 de outubro, o Tribunal de Delaware decidirá se elas são devidas e aprovará ou não o pedido de Chapter 11 e o acordo de indenização de talco. 

O caso da Avon está sendo comparado ao da Johnson & Johnson, que também enfrenta ações judiciais movidas por clientes que associam o uso de produtos com talco da marca ao desenvolvimento de câncer, e teve seu pedido de Chapter 11 negado. 

Mas há diferenças significativas entre os dois casos. A J&J criou uma nova empresa para segregar os passivos de talco dos ativos operacionais e pediu recuperação judicial apenas para essa nova empresa. No caso da Avon, a proteção é pedida para uma empresa já existente e com passivos e ativos operacionais. 

“A Avon Products não foi ‘fabricada’ pela Natura para solicitar o Chapter 11”, destacam os analistas da XP, que acreditam que o resultado mais provável é que a recuperação seja aprovada e finalizada até o fim de 2024. 

O tamanho do problema da J&J também é muito maior. A companhia enfrenta mais de 40 mil processos e, no pedido de proteção judicial, propôs acordo de US$ 8,9 bilhões às reclamantes, a maioria mulheres que desenvolveram câncer de ovário, com um contingente menor de mesotelioma. 

A imagem da Avon foi bastante desgastada lá fora por conta dos processos do talco em meio à crescente pressão de consumidores para que empresas tenham melhores práticas de sustentabilidade e governança. 

A Natura, porém, conseguiu descolar sua imagem do imbróglio. No dia do anúncio da recuperação da Avon, as ações na Natura caíram por conta do resultado ruim do segundo trimestre apresentado no mesmo dia.