Toulouse, França* — A Latam recebe nos próximos dias no aeroporto de São Carlos, no interior de São Paulo, um Airbus A320Neo. Será a 18ª entrega de um total de 31 unidades encomendadas do novo modelo, que consome 20% menos combustível que a geração anterior.
Mas, desta vez, a entrega terá um componente inédito.
O voo, que parte de Toulouse e faz um pit stop em Fortaleza, vai marcar a primeira vez em que a Latam colocará nos ares uma aeronave feita para transportar passageiros usando um combustível sustentável de aviação (SAF). (Este voo de entrega, conhecido como ‘ferry flight’, terá apenas a tripulação.)
Produzido pela TotalEnergies, o combustível é uma mistura de 30% de um SAF produzido com óleo de cozinha reciclado e o restante, querosene de aviação. Em março, a Latam Cargo Chile, divisão de cargas da empresa, já tinha realizado um voo internacional com SAF, da Espanha à América do Norte.
Maior empresa aérea da América Latina, o grupo Latam tem a meta de se tornar neutro em carbono até 2050. Mas, num setor considerado de difícil descarbonização, o caminho para chegar lá ainda é incerto.
O compromisso de mais curto prazo inclui incorporar 5% de SAF em suas operações até 2030, o equivalente a 300 milhões de litros, priorizando produtores na América do Sul.
À primeira vista, o número pode parecer pequeno. Mas a ideia é dar um sinal claro para o mercado de que há demanda, e aos poucos, driblar os desafios de escassez de oferta e preço alto, afirma Juan José Toha, diretor de assuntos corporativos e sustentabilidade do Latam Airlines Group.
“Temos alguns compromissos de compra na região, mas o que vemos é que ainda não há tração para materializar esses projetos”, diz Toha. “Ainda não há clareza na América do Sul sobre regime tributário, se [os SAF] terão incentivos ou mandatos. Quando não se tem clareza, é difícil fazer os investimentos”.
No geral, um SAF custa entre duas a cinco vezes mais que o querosene de aviação convencional. Os combustíveis respondem por até 40% dos gastos operacionais das companhias aéreas, que tradicionalmente já trabalham com margens bastante apertadas.
A grande vantagem do SAF é que ele pode substituir diretamente o combustível fóssil. “Não é preciso mudar a aeronave nem o motor. Não há impacto na manutenção ou na operação”, afirma Steven Le Moing, gerente do programa de combustível sustentável de aviação na Airbus.
A preocupação é com certas características desse combustível alternativo, como normas de viscosidade e densidade estabelecidas por agências reguladoras, diz o executivo.
A Airbus afirma que suas aeronaves já podem voar com até 50% de SAF nos tanques, e a fabricante já realizou voos de teste em que os aviões utilizaram apenas combustíveis renováveis.
Para as companhias aéreas, a questão é garantir a oferta.
Sinal de demanda
A estimativa é que o volume atual de SAF atenda a somente 0,1% da demanda de combustíveis da indústria de aviação.
“Não podemos comprar um combustível que ainda não existe. O que estamos fazendo agora é falar com os governos, produtores e potenciais produtores para promover um ambiente em que então os investimentos sejam necessários”, diz Toha.
A Latam já trabalha com a finlandesa Neste, maior produtora de SAF do mundo, a francesa TotalEnergies, a britânica AirBP e está em conversas com os principais produtores de combustíveis da América do Sul, como a Petrobras, afirma o executivo.
A preferência por produtores onde se concentra a operação do grupo, além de critérios econômicos, leva em conta aspectos sustentáveis. As emissões do transporte e processamento do combustível também entram na conta do net zero pretendido pela Latam.
Há pouco mais de dois meses, a Latam da Colômbia anunciou uma parceria com a Bio-D, que busca soluções energéticas no país, com o objetivo de trabalhar em conjunto para promover pesquisa e desenvolvimento de SAF.
A estratégia de sustentabilidade da Latam, renovada em 2021, prevê um investimento de US$ 100 milhões em dez anos para soluções ligadas a mudanças climáticas e economia circular. Ainda não está especificado quanto desse dinheiro será destinado à descarbonização de combustíveis.
Brasil pode ser líder
A América Latina e o Caribe têm potencial de produzir entre 130 bilhões e 200 bilhões de litros de combustíveis alternativos para avaliação, conforme dados da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata).
Sozinho, o Brasil teria potencial de produzir um terço do SAF mundial, afirma Toha. “O Brasil tem feito um trabalho importante, fez um processo de uma política pública, mas em relação ao potencial ainda há muito trabalho a ser feito.”
O risco, diz ele, é que acabemos sendo exportadores de matérias-primas e não produtores e consumidores. No Paraguai, o projeto Omega Green se prepara para ser pioneiro em uma planta de SAF na região, liderado pela brasileira Be8 (ex-BSBios).
“Basicamente, se olhar o SAF no mundo, a maior parte da produção vem dos Estados Unidos”, afirma Diego Martínez del Río, gerente de sustentabilidade da Latam Airlines. A estratégia do país se baseia em incentivos econômicos.
A brasileira GranBio recebeu uma subvenção US$ 80 milhões do governo americano para desenvolver sua tecnologia de etanol de segunda geração, que também pode ser transformado em SAF.
Na Europa, por outro lado, a ênfase é exigir um aumento gradual no uso de SAFs por meio de regulação. Por aqui, as iniciativas ainda patinam.
Mas alguns sinais emanam de Brasília. No ano passado, o Ministério de Minas e Energia apresentou as primeiras diretrizes do que poderia ser um marco legal do SAF. O texto determina que operadores aéreos precisariam reduzir 1% de suas emissões de CO2 a partir de 2027 com o uso de combustível sustentável em operações domésticas.
Já no Congresso, um projeto de lei apresentado pelo então deputado Ricardo Barros (PP-PR) – que ainda não entrou na pauta de votação – propõe a determinação de 2% de uso de SAF na mistura de combustível a partir do mesmo ano, com aumentos anuais de 1 ponto percentual até 2030.
A escolha por 2027 acompanha as diretrizes do Corsia, um acordo da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), do qual o Brasil é signatário. O objetivo é que, a partir de 2027, as emissões do setor sejam estabilizadas, mesmo que haja crescimento no futuro.
Em 2050, quanto a indústria deveria atingir o net zero, a meta é que as emissões que não puderem ser cortadas por vias tecnológicas possam ser compensadas com o uso de crédito de carbono.
As companhias aéreas temem ter de arcar com a maior parte dos custos da descarbonização do setor. Caso haja determinações governamentais – o que parece cada vez mais provável –, quem pode acabar pagando a conta são os consumidores.
Entre os próximos passos, a Latam e Airbus vão fazer um estudo em parceria com o MIT com o objetivo de disponibilizar informações sobre SAF e impactos socioeconômicos aos governos latinoamericanos para que façam uso na elaboração de políticas públicas.
O net zero da Latam
Para cada um dos cinco países onde a Latam têm divisões (Brasil, Chile, Peru, Equador e Colômbia), a meta até 2030 é a mesma: a companhia deve cortar ou compensar metade das emissões geradas em voos domésticos — mas não especifica quanto será reduzido e quanto será compensado.
As emissões por operações brasileiras equivalem à metade da pegada climática do grupo. Além do aumento gradual no uso de SAFs, a Latam aposta em melhorias de eficiência nas aeronaves que utiliza.
E desde o ano passado a empresa mantém um programa de conservação florestal para adquirir créditos de carbono.
Com uma frota de 310 aeronaves – entre os de longa distância da Boeing e os domésticos e regionais da Airbus –, a Latam gerou quase 13 milhões de toneladas de CO2 no último ano. Apesar das quedas em 2020 e 2021, quando a pandemia por covid-19 esteve no auge, o número supera as emissões de 2019.
*Atualizada às 12h59: A meta para o corte ou redução das emissões domésticas no Brasil até 2030 é a mesma para o Chile, Peru, Equador e Colômbia, e não mais agressiva, como constava.
*A repórter viajou a convite da Latam Airlines Group e da Airbus