Alguns dos últimos passos dados pela antiga gestão da Americanas podem ser um indicativo de que não só os executivos que dirigiam a companhia por décadas tinham plena consciência dos problemas que viriam a emergir, como houve uma tentativa de fazer um controle de danos.
Apenas dois meses antes do maior escândalo contábil do mercado brasileiro vir à tona, entre outubro e novembro de 2022, a equipe financeira da varejista contratou o BTG Pactual para renegociar os termos de duas emissões de debêntures da companhia, a 14ª e a 15ª. Lançadas em 2020 e com vencimento em maio e junho de 2023, elas totalizavam uma dívida de R$ 1 bilhão.
Em comum, as duas emissões eram as únicas da varejista que continham cláusulas (covenant) segundo as quais a companhia não poderia ultrapassar um índice de endividamento de 3,5 vezes, representado pela relação entre a dívida líquida e o Ebitda.
Caso sua alavancagem financeira cruzasse esse limite, a dívida venceria antecipadamente. Nesse tipo de situação, não só a empresa é obrigada a saldar a dívida antes da hora, como tem que pagar uma salgada multa aos credores, pode ter outras dívidas aceleradas e fica exposta a um desgaste na relação com a comunidade financeira de forma geral.
A empresa dizia que, por conta da existência desses covenants, gostaria de retirar os papéis do mercado. Como as regras dos dois papéis não permitiam essa recompra antecipada, era preciso conseguir o aval dos debenturistas em assembleia para seguir com seu plano. E o BTG, justamente o credor que viria a adotar a postura mais dura em relação à varejista depois de revelado o rombo, naquele momento foi contratado para fazer o meio de campo com o mercado.
No apagar das luzes
Quando começaram a ser procurados pelo banco em dezembro, muitos investidores estranharam.
Naquele momento, a posição financeira reportada pela empresa era extremamente confortável e muito distante do limite previsto nas debêntures.
A empresa tinha acabado de informar um índice de alavancagem de apenas 1,7 vez no terceiro trimestre, além de uma “robusta” posição de caixa de R$ 14 bi. A estratégia não parecia fazer sentido.
Mas a justificativa apresentada pela Americanas é que a existência dos covenants causava descontentamento dos investidores de outros papéis da companhia, que se queixavam de não contar com a mesma proteção contra uma explosão da dívida.
Poucos meses antes, em julho, a empresa havia emitido R$ 2 bi em debêntures e o tema havia gerado ruídos no mercado, segundo a companhia.
As conversas prosseguiram e no dia 23 de dezembro, no apagar das luzes do ano e já de saída, o então CEO Miguel Gutierrez decidiu convocar as duas assembleias de debenturistas para deliberar sobre a recompra já no dia 13 de janeiro. Antes disso, na primeira semana do ano, deveriam acontecer encontros com os credores para explicar a operação. Tudo isso foi marcado mesmo sabendo-se que o comando da empresa seria outro.
Com a chegada do novo CEO Sergio Rial para substituir Gutierrez após a virada do ano, coube a ele e seu CFO, André Covre, dar continuidade ao processo de renegociação.
Os dois executivos foram surpreendidos pela existência da operação em curso e a explicação dada a eles teria sido diferente daquela apresentada ao mercado. Executivos do departamento financeiro disseram que esperava-se um rompimento dos covenants no balanço do quarto trimestre por causa de uma deterioração do resultado da companhia.
No terceiro trimestre a varejista já tinha apresentado uma queda no resultado, com forte desaceleração nas vendas. Mas a piora no último trimestre do ano teria que ser brutal para que a alavancagem saísse de 1,7 vez para mais de 3,5 vezes; e esse cenário não parecia óbvio.
Covre assumiu o cargo de CFO no dia 2 e já no dia 4 participou de uma série de encontros online com gestores de fundos que detinham os papéis.
Dele, gestores ouviram que existia um risco de rompimento dos covenants e que, se tal cenário se confirmasse, seria melhor para os debenturistas ter a dívida pré-paga do que concorrer com outros credores que também poderiam ter seus vencimentos acelerados a partir de então. Mas ele não bancou que o rompimento aconteceria. (Como aquela versão do balanço nunca verá a luz do dia, a dúvida não será sanada.)
Nos dias seguintes aos encontros com investidores, tudo desandou rapidamente. Já no dia 6 de janeiro, uma sexta-feira, Rial mandou cancelar a assembleia do dia 13. O comunicado do cancelamento foi publicado na segunda, dia 9, e dois dias depois o rombo contábil foi revelado.
Desde então, os credores da companhia têm revisitado a sequência dos fatos com a forte desconfiança de que o real motivo por trás da tentativa frustrada de retirar os papéis do mercado era outro.
A leitura predominante é que os executivos até então no comando conheciam bem os problemas e sabiam que, cedo ou tarde, a empresa teria que fazer ajustes contábeis no balanço que fatalmente levariam ao rompimento dos covenants e à aceleração da dívida.
Segundo essa hipótese, os executivos ainda teriam a esperança de que fossem feitos ajustes contábeis dentro do aceitável, mas suficientes para romper os covenants e o pré-pagamento de tais debêntures ajudaria a fazer um controle de danos.
Procurada, a Americanas enviou a seguinte nota:
“A Americanas S.A. é uma companhia de capital aberto, listada no Novo Mercado, um segmento especial de listagem da B3 que exige padrões de governança além dos que constam na lei.
Diante dos fatos identificados em janeiro, o Conselho de Administração imediatamente determinou a criação de um Comitê Independente para apurar os fatos e sinalizou o compromisso em divulgar a apuração e o trabalho de retificação dos números, com seu auditor externo atual, bem como a contratação de uma nova CFO, anunciada no último dia 17.
A companhia reforça que todos os seus órgãos sociais (conselho, diretoria e comitês) estão trabalhando conjuntamente com o objetivo de manter as operações da companhia de forma adequada e apoiar os trabalhos do Comitê Independente.
A Americanas informa ainda que está colaborando com todas as apurações e investigações que têm sido realizadas, tanto pela Comissão de Valores Mobiliários, como outras autoridades e órgãos competentes.”
O BTG não comentou.