Brasil e OCDE: vai dar match?

O convite para que o país passe a integrar a organização incluiu a reversão do quadro de desmatamento – e o compromisso será nosso passaporte, escreve Natalie Unterstell

Brasil e OCDE: vai dar match?
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O convite para o Brasil iniciar as negociações de ingresso na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), formalizado na última semana de janeiro, incluiu a cobrança de que se reverta o atual quadro de desmatamento.

Afinal, o que significa na prática passar a integrar essa associação? E que oportunidades temos nesta cooperação?

A OCDE é um clube de boas práticas internacionais, que surgiu em um contexto pós-guerra buscando disseminar a democracia e governança. Da nossa região, Chile, Colômbia, Costa Rica e México já são membros. O Brasil manifestou seu interesse formal em aderir em 2017.

A promessa é que, se compatibilizarmos nosso arcabouço legal com os padrões recomendados pela entidade em diversas áreas, podemos carimbar nosso passaporte para um mundo de investimentos ainda não acessados.

Poderíamos fazer isso mesmo sem a membresia? Sim, as boas práticas estão aí para serem adotadas. O diferencial é que membros também contribuem para definir esses padrões e acessam outro nível de “jogo” entre pares. 

A orientação é pró-mercados e há uma grande preocupação com a qualidade dos ambientes de negócio.

Na agenda ambiental, por exemplo, o padrão OCDE contempla melhor regulação e políticas para mercados e finanças verdes – uma agenda que se arrasta na Esplanada dos Ministérios. Querer entrar para o clube significa ter de se esforçar mais nesse sentido.

Na área de mudança do clima, o princípio do poluidor-pagador é um fundamento para a OCDE: prega-se que os custos de externalidades ambientais sejam atribuídos a poluidores, e não subsidiados pelos contribuintes. Nesse quesito, poderia haver um grande impulso para a criação de instrumentos de mercado de carbono como forma de atingir metas climáticas.

Convite condicionado

Para quem acompanha de perto a agenda internacional, não foi surpresa que a carta-convite ao Brasil tenha vindo com um alerta ambiental tão explícito. Em seu relatório mais recente de avaliação ambiental do Brasil (2021), a entidade indicou que o país “ainda não está alinhado com os padrões e boas práticas ambientais da OCDE” e apontou 33 recomendações em 11 padrões mínimos de proteção ambiental observados nos países democráticos mais desenvolvidos do mundo. Em específico, citou: 

“O relatório mostra que o Brasil desenvolveu uma legislação sólida sobre informações ambientais, gestão de água e resíduos e biodiversidade. No entanto, são necessários mais esforços para traduzir as disposições legais em práticas eficazes que promovam a sustentabilidade.” (OCDE, 2021; pág. 5)

O alerta não foi exatamente um “puxão de orelha”, mas sim um recado: bom padrão regulatório ambiental envolve não apenas políticas, processos e procedimentos, mas principalmente um bom histórico de implementação e resultados.

O mesmo relatório também falou do risco de que reformas em curso no Congresso Nacional tornem nossa prática ambiental incompatível com boas práticas internacionais, fazendo referência ao projeto de lei sobre Licenciamento Ambiental:

O projeto de Lei Geral de Licenciamento Ambiental federal introduz a possibilidade de agências ambientais em todos os níveis de governo realizarem Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) de políticas, planos ou programas. (…) No entanto, a proposta não está totalmente em consonância com a Recomendação OECD/LEGAL/0172, uma vez que não introduz uma exigência legal de AAE(…). Além disso, a proposta estabelece a AAE como um substituto para o procedimento de licenciamento ambiental de projetos. Projetos incluídos em planos e programas governamentais que foram sujeitos a uma AAE não precisariam passar por uma Avaliação de Impacto Ambiental (EIA) ou por um procedimento de licenciamento ambiental. ” (OCDE, 2021, pág. 18).

Aqui, cabe ressaltar que o mundo inteiro está acompanhando as políticas ambientais brasileiras (tanto federais quanto subnacionais). Não estamos isolados, e nossas instituições emitem sinais ao mundo lá fora. Portanto, nossa performance e eventuais mudanças nas regras do nosso jogo aqui serão sempre avaliadas. Sobre isso, vale destacar outro trecho:  

“Nos últimos cinco anos, o Brasil enfrentou grandes desafios ambientais, inclusive dois rompimentos de barragens de resíduos de mineração, o pior derramamento de petróleo da história do país e um pico de desmatamento e incêndios florestais. Esses desafios somaram-se a persistentes problemas sociais e econômicos, agravados pela crise da Covid-19″. (OCDE, 201, pág. 61)

Hora de cumprir as regras

A carta da OCDE traz um recado importante para candidatos e ocupantes de cadeiras no Planalto e no Congresso: os consensos já estabelecidos pela sociedade em áreas como o Código Florestal e a Política Nacional de Mudança do Clima precisam ser plenamente realizados.

Em vez de reabrir consensos alcançados no passado, precisamos de implementação e aperfeiçoamento, com foco prático. Parece absurdamente óbvio – porém é o que estamos negligenciando há anos. 

Basta lembrar o exemplo da política de prevenção e controle do desmate, que vigorou entre 2003 e 2012. Tivemos um baita sucesso naquele período, até que os interesses e plataformas eleitorais se unissem para revisar o consenso em torno do Código Florestal e os indicadores que eram positivos desses uma completa meia-volta.  

Precisamos de estabilidade nas regras do jogo e inovação, não de revisões infindáveis das políticas e práticas públicas. Os players sérios dos mercados sempre pedem isso – mas são menos audíveis quando o assunto é clima e ambiente.

Além disso, é notável que, nos últimos três anos, o governo federal tenha editado mais de 12 mil atos normativos na área ambiental, sendo pouco mais de 10% de impacto relevante, segundo a Política Por Inteiro.

O monitoramento comprova a baixa implementação das boas políticas: extensão do prazo para o fim dos lixões no país até 2024 (atraso de 10 anos) e baixíssimo alcance dos benefícios para quem ajuda a manter nossa floresta de pé (seis famílias até o momento). Ou seja, pouca ação.

Por outro lado, os eventos experimentados no período são verdadeiras “cicatrizes” no histórico do país, particularmente pela escala das crises ambientais vividas no período. A taxa oficial de desmatamento na Amazônia atingiu 13.235 km² de agosto de 2020 a julho de 2021, que faz estourar em mais de 3 vezes a meta disposta no regulamento da Lei 12.187/2009 para o ano de 2020.

E o nível de ilegalidade da supressão de vegetação no bioma é estimado em mais de 95%, segundo dados do Mapbiomas – revelando a distância entre realidade e discurso quanto ao compromisso assumido na COP26 quanto a eliminar o desmatamento ilegal até 2030.

De Bolsonaro, é pedido como credencial justamente o que ele buscou apagar nos três anos anteriores: o legado das políticas ambientais. Não é segredo que a prioridade do presidente sempre foi ‘resetar’ o aparato estatal de combate aos crimes ambientais.

Falhou em suas tentativas de modificar as leis vigentes e foi impedido de ressignificar a aplicação delas, como no caso da Lei da Mata Atlântica. Mas o atual governo conseguiu paralisar a implementação da política socioambiental via abandono de ações comprovadamente eficazes (como titulações de terras), desincentivou o cumprimento das leis e promoveu o desmonte da capacidade estatal de monitorar, prevenir e punir crimes ambientais. 

Por medidas objetivas, são minúsculas as chances de o governo Bolsonaro realizar a acessão, segundo o critério de que não basta atender às exigências normativas da OCDE na esfera ambiental.

Próximo, por favor

Assim, a condição colocada pela OCDE não é para Bolsonaro. Ela ultrapassará este governo e estas eleições.

Desacelerar, parar e reverter a taxa de perda de florestas será uma missão de todos os próximos governos federais, assim como de governos amazônicos, povos indígenas, cientistas, sociedade civil e setor privado. Delírios sobre o desmatamento ser um problema do metaverso, e não da nossa realidade, devem ser deixados para os anais de um triste período da nossa história. 

A demanda da OCDE ao Brasil (e também a outros cinco países convidados na mesma “leva”) revela um fato: a perda de florestas se tornou um risco sistêmico, afetando não apenas nós, brasileiros, mas toda a comunidade global. E, por isso, mobiliza produtores, investidores e consumidores mundo afora a livrar prateleiras virtuais e reais da contaminação por desmatamento. 

O compromisso com a ação será nosso passaporte para a atração de investimentos e realização de comércio internacional. Se bem sucedidos, poderemos não só atenuar o risco de desmatamento embutido em nossas relações internacionais, mas, oxalá, ganhar credibilidade para pautar os padrões ambientais internacionalmente, segundo as nossas experiências e preferências. Isso realizaria aquilo que muitos romantizam como “potência ambiental” e que na prática significa receber o carimbo de novos pares, como os países-membros da OCDE.

* Esse texto contou com valiosas contribuições de Karina Bugarin, economista, e Liuca Yonaha,  jornalista.

**O Instituto Talanoa, do qual sou co-fundadora e presidente, lançará em breve uma régua de monitoramento do processo de acessão à OCDE, com a lente ambiental e climática, preparada desde o último ano. O foco é entender possíveis oportunidades e riscos para o Brasil, com olhar especial para a Amazônia.

* Natalie Unterstell é presidente do Instituto Talanoa, membro do Painel de Acreditação do Green Climate Fund e escreve mensalmente para o Reset sobre políticas climáticas.  Com mestrado em administração pública pela Escola de Governo John F. Kennedy da Universidade de Harvard, atuou em governos federal e estaduais, onde apoiou a construção de políticas públicas, incluindo o mais ambicioso programa de adaptação à mudança do clima já realizado no país, o Brasil 2040, como diretora na SAE/Presidência da República.