(Este texto foi publicado em primeira mão na newsletter Carbono Zero. Inscreva-se aqui.)
A indústria automobilística está diante da maior transformação da sua história. Em boa parte do mundo, o roteiro já está definido: saem os tanques de gasolina, entram as baterias.
A motivação principal é a necessidade de reduzir as emissões de gases de efeito estufa. A janela para evitar consequências ainda mais graves da mudança do clima está fechando, e rápido.
Mas no Brasil ainda é difícil enxergar a frota desse mundo pós-carbono. Um poderoso lobby de aliados improváveis, somado a certas características únicas do país, complicam uma decisão que parece óbvia em qualquer outro lugar.
Trata-se basicamente de uma escolha entre dois caminhos. Eles não são excludentes, mas as jornadas e os destinos são muito distintos.
De um lado estão as montadoras tradicionais e seus fornecedores, os produtores de biocombustíveis e os sindicatos. Eles defendem que a opção lógica é investir em carros híbridos com motor flex.
Do outro estão desafiantes chinesas, que veem na ruptura tecnológica do carro elétrico uma chance de desbancar empresas centenárias.
O governo diz ser neutro em relação à rota tecnológica: desde que comprometidas com a descarbonização, todas as companhias poderão se beneficiar do recém-anunciado programa Mover e seus R$ 19,3 bilhões em incentivos fiscais até 2028.
Ambos os lados têm argumentos persuasivos. Tentei resumi-los abaixo, como se estivéssemos assistindo a um debate. É disso que se trata: as decisões tomadas agora vão repercutir por décadas e influenciar o lugar do país no mapa-múndi da economia verde.
Que caminho devemos tomar? Leia e tire suas conclusões.
À moda brasileira
A solução são os carros híbridos flex. Eis o porquê.
- Eles são muito mais eficientes que os tradicionais porque têm bateria, mas não dependem de uma rede de recarga, pois o carregamento é feito pelo próprio motor a combustão (e também pela frenagem).
- Nossa indústria de biocombustíveis é a mais desenvolvida e sofisticada do mundo.
- Todo posto tem bombas de etanol, e a mistura do anidro com a gasolina pode chegar a 35% (desde que tecnicamente viável), segundo o projeto de lei do Combustível do Futuro sendo apreciado no Senado.
- Oito entre dez carros que saem das concessionárias hoje são flex, uma inovação brasileira. Podemos liderar a descarbonização do Sul Global, exportando tecnologia.
- Ela não se resume aos motores. O conhecimento acumulado em cinco décadas produzindo alternativas aos fósseis pode ser aplicado na África e no Sudeste Asiático, onde a cana-de-açúcar também pode prosperar.
- Carros movidos a bateria custam caro demais e são um luxo até nos países ricos. Não há a menor chance de subsidiar a renovação da frota, como fez o bilionário pacote verde de Joe Biden nos Estados Unidos.
- A conta é complexa e sujeita a muitas variáveis, mas considerando o ciclo de vida completo de um carro – da produção das matérias-primas ao descarte e incluindo a rodagem, claro –, há cálculos indicando que a pegada de carbono de um veículo tradicional é menor que a de um movido a bateria.
- Por fim, a transição tem de ser justa. Precisamos preservar a indústria automotiva. Um motor a combustão tem cerca de dez vezes mais peças que um elétrico.
- Isso significa menos empregos nas oficinas, nas fábricas de autopeças e em toda a longa cadeia automobilística, menos arrecadação e mais importação de componentes.
Em defesa das baterias
Não vamos mudar o perfil da frota tão rápido como os países ricos, mas as baterias são o futuro. Considere:
- O carro híbrido flex vendido como resposta para a descarbonização no Brasil nem sequer entra nas estatísticas mundiais de veículos elétricos ou “eletrificados”.
- O sistema foi introduzido pelo Prius, da Toyota, em 1997. Houve ganhos incrementais desde então, mas esse tipo de carro foi literalmente ultrapassado pela tecnologia.
- A bateria é pequena e dá só um empurrão. O que move o carro é o motor de combustão, que funciona o tempo todo. Etanol no tanque diminui as emissões, mas os particulados continuam sendo lançados no ar.
- O Brasil tem uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo. Carregar uma bateria aqui faz todo o sentido (e sai mais barato que encher o tanque).
- Sim, o preço dos elétricos ainda é maior. Mas o componente de maior custo, a bateria, fica mais barato. E não há trégua na corrida por melhores materiais, mais eficiência e capacidade.
- Não é necessário pular direto para os elétricos puros. Os híbridos plug-in oferecem o melhor dos dois mundos. Eles têm baterias grandes, carregadas na tomada.
- Os elétrons movimentam o carro nos deslocamentos do dia a dia. Vai viajar ou ficar longe de estações de recarga? O tanque está aí para isso.
- Sim, a transição tem de ser justa. O governo pode investir em requalificação. Novos empregos serão criados. Com recursos minerais, o país pode fabricar as células de bateria em vez de importá-las.
- O Sul Global pode trilhar uma rota parecida com a brasileira? Sem dúvida. Mas a onda da eletrificação pode ser mais rápida. Para que outros mercados o país exportaria?
- Podemos nos dar ao luxo de não aprender e desenvolver aqui dentro as várias tecnologias do carro elétrico? O Brasil será o último refúgio do motor de combustão interna?
HÍBRIDO FLEX – Esses modelos têm dois motores, um de combustão e um elétrico. Mas a bateria é pequena e não pode ser carregada na tomada – ela ajuda na eficiência. O carro não roda sem combustível
HÍBRIDO PLUG-IN – Pode funcionar só com gasolina ou só com eletricidade. O nome plug-in indica que a bateria pode ser carregada na tomada. A ideia é que o tanque funcione como uma garantia caso não haja opção de carregamento
100% ELÉTRICO – Também conhecido pela sigla BEV (battery electric vehicle) O carro só funciona com eletricidade. Os mais conhecidos são os da Tesla, que apostou nos 100% elétricos desde sua fundação