Começa com a bateria, que passa a fraquejar no meio da tarde. Os apps vão ficando mais lentos. Talvez você também tenha tido de apagar fotos antigas para liberar espaço de armazenamento. Seu celular está nas últimas.
Aquele smartphone novinho de três ou quatro anos atrás pode valer alguma coisa na troca por um novo, mas é provável que ele vá para o fundo de alguma gaveta.
A vida útil de um celular pode ser curta, mas a lista dos potenciais problemas de sustentabilidade da sua cadeia de produção é longa: vai do trabalho infantil em minas do Congo e à montanha de lixo eletrônico que cresce de forma descontrolada.
Esse foi o ponto de partida de três empreendedores holandeses que decidiram entrar no negócio de smartphones.
Enquanto Apple, Samsung, Xiaomi e outros gigantes apostam na tecnologia de última geração, a Fairphone decidiu criar o primeiro celular sustentável.
O Fairphone 4, lançado há dois meses pela startup, ainda não consegue competir com os recursos de um iPhone 13 ou de um Galaxy S21.
Mas o aparelho é perfeitamente funcional, tem preço competitivo, usa matérias-primas que não estão associadas a conflitos e práticas desumanas e (grande inovação!) pode ser consertado.
A startup não tem a esperança de competir com os grandes. Em um único dia a Apple vende cinco vezes mais que a Fairphone vende num ano. Mas este é justamente um dos problemas que a empresa quer resolver: o mundo tem celulares demais.
A cada ano, são vendidos 1,4 bilhão de novos celulares, mas menos de 20% (numa estimativa otimista) são reciclados. “Não é à toa que o lixo eletrônico é o tipo de resíduo que mais cresce no mundo”, afirma a empresa.
Celular longa vida
Garantir a longevidade do Fairphone é um dos principais objetivos da startup. O site iFixit, que avalia a “consertabilidade” de eletrônicos de consumo, deu nota máxima ao modelo mais recente da empresa.
Todos os itens que costumam dar mais problemas, como a tela e a bateria, podem ser substituídos com facilidade. Peças de reposição estão à venda no site da empresa, e um canal no YouTube ensina a fazer os reparos, que aparentemente não são nada complicados.
“Ah, se a Apple fizesse celulares assim”, diz o vídeo em que o especialista do iFixit abre e inspeciona o Fairphone 4.
A gigante de Cupertino pode não fazer os iPhones assim – ainda. Mas as fabricantes de eletrônicos, especialmente celulares, estão sendo pressionadas para simplificar a vida de quem quer estender a vida do aparelho por alguns anos a mais.
A União Europeia aprovou uma lei em março que obriga fabricantes de TVs e eletrodomésticos de linha branca a manter estoque de peças sobressalentes para garantir consertos dez anos após a venda dos produtos. Uma lei semelhante já está em vigor no Reino Unido.
Próximas da lista: as fabricantes de smartphones, laptops e tablets.
Tentativas de fazer o mesmo nos Estados Unidos enfrentam o poderoso lobby das Big Techs. Pelo menos 27 Estados americanos tentaram sem sucesso passar leis regionais para dar mais poder aos consumidores.
Um dos argumentos, afirmam as companhias, é a segurança física dos usuários, já que alguns reparos podem envolver risco de choques ou explosões, no caso das baterias.
Segundo as entidades de defesa do consumidor, isso é balela.
Algumas decisões de design são tomadas deliberadamente para que os consertos só possam ser feitos pelas próprias empresas, numa tentativa de gerar receitas e sufocar oficinas independentes.
Toma lá, dá cá
Por enquanto, o Fairphone só é vendido na Europa (a sede da empresa fica em Amsterdã). No ano passado, a startup vendeu pouco menos de 95 mil unidades. A Samsung vendeu quase 190 milhões.
Quem escolhe o smartphone mais sustentável tem de fazer algumas concessões. A câmera não é das melhores. O software (Android) às vezes fica lento. Você pode respingar água no Fairphone 4, mas não pode mergulhar com ele na piscina (nem deixá-lo cair no vaso sanitário).
Mas, segundo os especialistas que o compararam com os celulares mais avançados, para um uso básico ele é mais que suficiente. O mais simples sai por 580 euros, um pouco mais caro que um modelo semelhante de uma marca famosa.
Em troca de um pouco mais de dinheiro e um pouco menos de tecnologia, o Fairphone oferece:
- Ouro com certificação Fairtrade (usado nos circuitos integrados, na câmera e no alto-falante);
- Alumínio e tungstênio comprados de fontes sustentáveis;
- Metais raros e plásticos reciclados;
- Reciclagem integral dos aparelhos vendidos;
- Garantia de cinco anos e a promessa de que o hardware vai funcionar com futuras versões do sistema operacional Android pelo mesmo período, no mínimo.
Hoje, cerca de metade dos materiais usados no Fairphone são sustentáveis. O plano é chegar a 70% daqui dois anos.
A questão dos minérios é especialmente problemática. As maiores minas de cobalto do mundo ficam na República Democrática do Congo.
Esse componente das baterias é explorado em pequenas minas artesanais, uma atividade que mistura conflitos civis, trabalho infantil e uma disputa geopolítica entre China e Estados Unidos por um bem essencial da transição energética.
Empresa social
A Fairphone, que deu lucro de 2,5 milhões de euros no ano passado e vem dobrando de tamanho nos últimos três anos, existe oficialmente como empresa social desde 2013.
Mas tudo começou três anos antes, com uma campanha para conscientizar os consumidores do impacto social e ambiental envolvidos na longuíssima cadeia de suprimentos dos eletrônicos.
“Depois de anos de campanha, percebemos que não estávamos criando uma alternativa”, afirmou Eva Gouwens, CEO da startup, num evento da Reuters. “Decidimos ser parte dessa indústria, virar uma empresa.”
Gouwens diz que, inicialmente, o plano era buscar os verdes “mais escuros”, aqueles consumidores realmente dispostos a abrir mão de funcionalidade em nome de um produto mais sustentável. Agora, a ideia é buscar os verdes “mais claros”.
O negócio pode não ser grande, mas já dá dinheiro. No ano passado, a Fairphone teve lucro de 2 milhões de euros. E, a julgar pela pressão cada vez maior sobre as concorrentes, a missão da companhia parece estar dando resultados.
“Queremos criar um mercado de eletrônicos com ética, e ao mesmo tempo incentivar [o restante da] indústria”, diz Gouwens.