COLUNA - WINSTON FRITSCH

Por que a polêmica viral do presidente da Guiana interessa ao Brasil

Irfaan Ali defende o direito de explorar petróleo. O Brasil está diante de uma decisão parecida – mas ela não será nada simples

Mohamed Irfaan Ali, o presidente de Guiana
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A cena em que o bem-educado e usualmente controlado presidente da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, literalmente bota o dedo na cara de Stephen Sackur, o veterano entrevistador da BBC e apresentador do popular Hard Talk, viralizou há quinze dias nas redes sociais.

A Guiana é um país de pouco mais de 800 mil habitantes que ocupa área quase igual à da Grã-Bretanha. Durante décadas sua renda per capita flutuou em torno de níveis da média subsaariana, cerca de US$ 1.000. Entretanto, desde as primeiras descobertas de petróleo feitas em 2015 em sua plataforma continental e rapidamente desenvolvidas pela gigante Exxon, o país atrai enorme interesse e crescentes investimentos da indústria global de óleo e gás.

Com isso, sua renda por habitante subiu explosivamente desde 2019, para cerca de US$ 20.000. Em 2022 sua economia cresceu surreais 62,3%. Os recursos do petróleo podem, se bem administrados como foram, por exemplo, na Noruega, rapidamente transformar este pobre país em um paraíso.

Ou não. Os desafios são enormes, a começar pela tentativa de anexação unilateral de grande parte do território da Guiana pelo governo de Maduro, incensado pelas descobertas “do lado errado” da fronteira. Os desafios políticos internos não são menores. O presidente Ali pertence a uma minoria de descendentes de asiáticos muçulmanos, governa com estreita maioria parlamentar e teve que enfrentar quatro meses de disputa judicial depois de ganhar as eleições de 2020 antes de ser empossado pela Justiça eleitoral.

Neste contexto, a irritação do presidente foi de fato uma explosão diante de um crescendo de agressividade de Sackur, com perguntas sobre aspectos da dimensão etnorreligiosa da política interna, do grave conflito de fronteira com a Venezuela e, em especial, sobre cláusulas controversas dos contratos, hoje bilionários, das concessões de exploração da Exxon.

Mas o gatilho do dedo na cara presidencial foi mesmo a pergunta, feita em tom de sermão, sobre o potencial impacto da enorme liberação de gases de efeito estufa caso seja levada a termo a exploração das reservas recém-descobertas que, segundo estatísticas citadas por Sackur, poderão chegar a 2 bilhões de toneladas.

A resposta de Ali foi dada em tom polido, mas firme. Depois de interromper bruscamente o entrevistador quando ouviu dele que “… mais de 2 bilhões de toneladas de emissões de carbono virão do fundo do mar, dessas reservas, e serão liberadas na atmosfera. Não sei se você, como chefe de estado, foi até a COP em Dubai…”, o presidente avisou que lhe daria “um sermão sobre mudança climática”.

E emendou: “Mantivemos essa floresta viva, que armazena 19,5 gigatoneladas de carbono, para que você e todo o mundo possam tirar proveito, sem pagar nada por isso. Por que vocês não levam em conta o fato de o povo da Guiana ter mantido a floresta viva? Temos a menor taxa de desmatamento do mundo. E sabe de uma coisa? Mesmo com o aumento da exploração dos recursos de petróleo e gás, ainda seremos ‘net zero’”. 

Finalizou perguntando, com uma pontada de sarcasmo, se seria o Greenpeace quem pagaria a conta de não explorar a floresta para o povo da Guiana.

Ranço colonialista

Não surpreende que esse evento tenha viralizado. Dado o ranço de colonialismo na forma com que foi formulada a pergunta, a enfática e dura resposta desnudou a hipocrisia com que os políticos e a mídia dos países desenvolvidos tratam a questão da conservação das florestas tropicais – em especial os europeus, onde a opinião pública é muito sensível à questão dos riscos da mudança do clima.

A conservação dessas florestas, que são tanto sorvedouros de gás carbônico quanto santuários do que sobra de biodiversidade na Terra, é crucial para o equilíbrio climático global. 

E esse é um tema importante e politicamente sensível, pois elas são concentradas em países tropicais em desenvolvimento. Tentativas de se responsabilizar países pobres por sua conservação em detrimento de seus objetivos nacionais de desenvolvimento gera, portanto, reações políticas não desprezíveis, especialmente em países de passado colonial recente e abundância de recursos naturais.

Repercussões no Brasil

O quase sururu na entrevista viral deve repercutir no Brasil, que, como a Guiana, é amazônico e petroleiro. Mas a análise ética e jurídica da discussão é complexa.

Os argumentos éticos usados pelo presidente são, prima-facie, impactantes. Deixa mal os grandes poluidores – não só as antigas potências coloniais e os EUA, mas também a China, hoje o maior vilão do clima – garantidos por uma espécie de perdão universal pelo gigantesco mal já feito. Como um perdão aos criminosos, mas sem compensação aos bem-comportados, o que é cristão, mas não economicamente justo.

De fato, a única resposta legalmente consistente e possível da Guiana, de acordo com o conceito de adicionalidade, central para o Acordo de Paris, é, simplesmente, não explorar. A exploração vai, de fato, jogar MAIS 2 bilhões de toneladas de CO2 na atmosfera. O que a floresta absorve hoje, vai continuar a absorver. Ou seja, não é adicional. 

No mundo do Protocolo de Quioto, apenas os ricos tinham responsabilidades explícitas de redução de emissões. No mundo do Acordo de Paris, onde países pobres e ricos têm as mesmas obrigações de preservar a atmosfera do crescimento dos gases de efeito estufa, explorar petróleo novo só é possível se compensar com reduções ou sequestro adicional.

O conceito de adicionalidade criado em Paris em 2015 – embora ainda com várias ambiguidades pendentes em sua aplicação, como demonstram as intermináveis discussões sobre a implementação do seu Artigo 6, somente aprovado em Glasgow, em 2021, na COP26, – zera o taxímetro da poluição industrial. Para o bem da humanidade e com vantagens para o Norte.

O argumento de preservar a floresta tropical serve somente para conseguir compensações voluntárias. Para um país que produza novas emissões, por qualquer outra rota, só rasgando ou refazendo o Acordo da ONU, ou compensando as emissões dentro do total de sua NDC, o limite nacional autodeclarado de emissões, com reduções ou sequestros adicionais.

Portanto, os que, no Brasil, pensam que a prospecção e o desenvolvimento de grandes reservas adicionais de petróleo podem ser feitos independentemente de seu impacto sobre o Acordo de Paris devem botar as barbas de molho. 

A política de petróleo não é mais parte da política energética. Especialmente no atual governo, que colocou a política do clima como sua maior prioridade, haverá o clássico dilema de escolhas com restrições. E esse é amazônico.