A nascente economia do hidrogênio verde promete mudar o equilíbrio geopolítico global – e o Brasil tem condições de ser um dos grandes beneficiários desse novo jogo de forças.
Um relatório publicado nesta segunda-feira pela Agência Internacional de Energias Renováveis (Irena, na sigla em inglês), indica consequências da transição energética que vão além do abandono dos combustíveis fósseis.
O hidrogênio deve influenciar a geografia do comércio de energia. O petróleo saudita ou o gás natural russo, que dão as cartas hoje, podem ganhar competidores regionais.
Também haverá lugar para players com alcance global. Países com abundância de energias renováveis de baixo custo podem tornar-se líderes mundiais de hidrogênio verde, com as “correspondentes consequências geoeconômicas e políticas”, afirma a Irena.
Em especial em sua versão verde, o hidrogênio era um “nicho” nas discussões mundiais, mas agora está em primeiro plano na agenda de governos, reguladores e investidores, escreve Francesco La Camera, diretor-geral da Irena.
Esse “elo perdido” do quebra-cabeças das energias limpas tem o potencial de causar rupturas profundas nas cadeias de valor estabelecidas.
“De curto a médio prazo, países e regiões podem impor sua liderança e moldar as regras desse mercado crescente”, afirma a Irena. “No longo prazo, países com amplo potencial de renováveis podem tornar-se centros de industrialização verde, atraindo indústrias com uso intensivo de energia.”
A agência não menciona o Brasil diretamente. Mas, com cerca de 85% da matriz elétrica vinda de fontes limpas, espaço de sobra para novas usinas solares e eólicas e infraestrutura portuária para exportação, o país é um candidato natural a ser um dos protagonistas desse novo desenho.
Mais competição
Existem algumas diferenças fundamentais entre a economia do hidrogênio e a dos combustíveis fósseis. A primeira delas é a natureza do negócio.
Petróleo e gás natural são encontrados e depois extraídos do subsolo ou do fundo do mar. Países têm a sorte de estar sentados em cima de grandes reservas, ou não.
Já o hidrogênio, elemento mais abundante do universo, é obtido a partir de processos de conversão, pois ele não existe “solto” por aí.
Existem diversos caminhos para isolar as moléculas de hidrogênio. A mais promissora em termos de sustentabilidade é a que usa a eletrólise da água.
Com a aplicação de uma corrente elétrica (de fonte limpa) e o uso de equipamentos chamados eletrolisadores, é possível separar as moléculas de hidrogênio e oxigênio da água, produzindo o hidrogênio verde, ou H2V.
Uma condição necessária para produzir o H2V, portanto, é a energia limpa. Alguns países foram abençoados com condições melhores que outros, mas sol e vento não são poços de petróleo. São recursos que podem ser desenvolvidos.
Será impossível esperar benefícios econômicos comparáveis aos gerados por combustíveis fósseis, diz a Irena.
Tampouco se vislumbra uma OPEP do hidrogênio ou o uso desse recurso como uma arma na queda-de-braço entre nações, como o russo Vladimir Putin faz com suas reservas de gás natural.
Pelo contrário. Alguns países podem sair na frente, mas a concorrência vai aumentar, e rápido. “Com a queda dos custos, o mercado terá participantes novos e diversos, tornando o hidrogênio ainda mais competitivo.”
Mais de 30 países e regiões já têm planos para produzir e exportar esse novo vetor energético no futuro próximo, afirma a Irena. A “diplomacia do hidrogênio já é parte da pauta de relações internacionais em vários países.”
Foi dada a largada
Já existe um mercado de hidrogênio, mas seus usos e características são muito diferentes do que se vislumbra para o mundo pós-petróleo.
Hoje, os negócios envolvendo hidrogênio movimentam cerca de US$ 175 bilhões por ano. Quase a totalidade da produção se destina à indústria química e petroquímica, para refino de petróleo e produção de fertilizantes.
E esse hidrogênio é sujo – em alguns casos muito sujo. Uma das principais rotas de produção, chamada de reforma de gás natural, resulta na emissão de cerca de 10 quilos de CO2 para cada quilo de hidrogênio produzido.
Enquanto a tecnologia dos eletrolisadores não ganha escala – e os projetos espalhados pelo mundo não entram em produção comercial –, uma alternativa é capturar as emissões de CO2 da rota dos combustíveis fósseis, produzindo o chamado hidrogênio azul.
Mas, segundo a Irena, talvez esse passo intermediário nem seja tão relevante. Em primeiro lugar, técnicas de sequestro de carbono eficientes ainda não foram demonstradas em grande escala. E a alta recorde do gás natural na Europa e na Ásia desde o ano passado representa mais um elemento de incerteza para o hidrogênio azul.
O que vem por aí
O documento aponta duas competições em paralelo nos próximos dez anos.
Uma delas será a disputa entre os países que reúnem os elementos necessários para a produção do hidrogênio verde.
Alguns, como o Chile, já divulgaram planos nacionais ambiciosos, que começam com o uso do H2V na descarbonização da economia local e, mais adiante, se concentram em exportação.
Já o Brasil, como disse ao Reset Agnes da Costa, chefe da assessoria especial de assuntos regulatórios do Ministério de Minas e Energia, prefere deixar os primeiros projetos – todos voltados para o mercado externo – se desenvolverem por conta própria.
A preocupação atual, afirma Costa, é mapear as oportunidades do mercado interno e criar mecanismos para incentivar a formação de pessoal e pesquisa e desenvolvimento dentro do país.
Faz sentido, porque a outra corrida, segundo a Irena, vai acontecer justamente no desenvolvimento das tecnologias do hidrogênio verde, em especial na eletrólise.
Hoje, o país que tem a liderança em termos de custo de produção dos equipamentos é a China.
Mas a cadeia de valor é muito mais extensa: da capacidade de geração de renováveis à infraestrutura de transportes, passando pelo maquinário de produção, a estimativa é que a economia do hidrogênio verde possa movimentar US$ 11,7 trilhões nos próximos 30 anos, segundo o banco de investimentos Goldman Sachs.
Em termos de volume, a produção anual global passaria de cerca de 120 milhões de toneladas para mais de 400 milhões em 2050, pelas contas da Irena, ou superaria 550 milhões, conforme um cálculo da Bloomberg NEF.
Esses números supõem um aumento massivo na geração de eletricidade de fonte limpa. Os eletrolisadores poderiam consumir mais de 20 mil TWh – quase a mesma quantidade produzida hoje, diz a agência.
E existe o problema do ovo ou da galinha.
“Sem demanda, os investimentos na infra-estrutura necessária podem ser arriscados demais para a produção em larga escala, mas, sem economias de escala, a tecnologia vai continuar cara demais”, afirma o relatório.