O hype em torno do hidrogênio verde ficou tão grande que já existem publicações especializadas na cobertura desse combustível do futuro.
Notícias quase diárias dão conta de projetos bilionários em estudos na África, no Golfo Pérsico e no Mar do Norte. Mas o Brasil, supostamente uma das futuras potências dessa que é uma das maiores apostas para descarbonizar atividades críticas, como transporte de carga e indústrias pesadas, pouco é mencionado.
Paul Baan, presidente da TransHydrogen Alliance (THA), um consórcio de quatro companhias globais que exploram a produção de hidrogênio pelo mundo para exportar para a Europa, não parece preocupado.
“O Brasil é muito competitivo”, diz Baan. Além de já contar com um histórico de sucesso em parques solares e eólicos, diz o executivo, o país tem um trunfo raro: as hidrelétricas.
A THA é uma das desenvolvedoras que assinaram memorandos de entendimento com o Porto de Pecém, no Ceará, para estudar a viabilidade de uma usina de hidrogênio verde no complexo.
Em fevereiro, o consórcio assinou um protocolo de entendimentos com a geradora de energia eólica Casa dos Ventos e a comercializadora Comerc Eficiência para garantir a eletricidade limpa necessária para operar seus eletrolisadores.
A eletricidade de fontes limpas é o insumo mais importante do hidrogênio verde. É ela que faz funcionar os eletrolisadores, equipamentos que quebram a molécula da água, separando o oxigênio do hidrogênio. (Para entender melhor o que é o hidrogênio verde e como ele é produzido, consulte o guia do Reset sobre o tema).
Baan afirma que uma decisão final de investimento não deve ser anunciada antes do fim de 2024, mas tudo está caminhando no ritmo normal.
“Temos projetos também no Marrocos, mas eu diria que o Brasil está mais adiantado, porque tem o porto”, diz Baan. Caso o projeto vá em frente, o plano da THA é produzir 2,2 milhões de toneladas de amônia verde por ano no Ceará para envio para a Europa.
A amônia produzida a partir do hidrogênio verde deve ser o primeiro uso prático do novo vetor energético, tanto para descarbonizar as indústrias de fertilizantes e química como para novas aplicações, substituindo o diesel nos navios cargueiros.
Baan conversou com o Reset sobre as expectativas da THA para o Brasil e como a economia global do hidrogênio está se desenhando.
O que faz a TransHydrogen Alliance?
A TransHydrogen Alliance foi criada dois anos e meio atrás. O grande motivador foi o fato de que, se você olhar para a quantidade de hidrogênio necessária na Europa até 2030, 2035, metade terá de ser importada.
Não há recursos renováveis suficientes disponíveis para produzir esse hidrogênio localmente. A THA basicamente procura locais onde haja energia renovável disponível para produzir e exportar o hidrogênio.
A primeira coisa que fizemos foi um estudo para avaliar as regiões com melhor potencial no mundo todo. Olhamos mais de 25, analisando as condições do sol e do vento, infraestrutura para exportação, distância para a Europa e assim por diante.
Selecionamos três ou quatro lugares que consideramos os melhores, e o Porto do Pecém é um deles.
E nosso modelo envolve toda a cadeia do hidrogênio verde.
Existem planos para produção de hidrogênio em várias partes do mundo, mas poucas decisões finais de investimento foram anunciadas. O que vai ser decisivo para quem quer largar na frente?
Sem dúvida, há muitos MOUs [memorandos de entendimento]. Em Pecém são 24, mas só quatro projetos já garantiram o espaço físico para suas instalações. Acredito que haverá um grande mercado no futuro, com espaço para muitos players.
Vejo dois fatores decisivos para quem quiser sair na frente. O primeiro é o fornecimento garantido de energias renováveis. No caso do Brasil, além de eólica e solar, há também a hidrelétrica. Acreditamos que o mix dessas três é muito poderoso.
O outro ponto importante são os compradores iniciais. Você pode produzir hidrogênio ou amônia verde, mas precisa dos clientes. A Trammo, que movimenta cerca de 60% do mercado global de amônia cinza [produzida com combustíveis fósseis], faz parte da nossa aliança. Eles sabem quais clientes vão precisar de amônia verde.
Leio muitas notícias na imprensa internacional sobre planos no Norte da África, no Golfo Pérsico, mas poucas sobre o Brasil. Como o senhor avalia a competitividade do país?
O Brasil é muito competitivo. Regras recém-aprovadas pela União Europeia determinam que, para ser considerado renovável, o hidrogênio terá de ser produzido em redes elétricas com pelo menos 90% da energia com fontes renováveis. O Brasil está muito perto disso.
Temos projetos também no Marrocos, mas eu diria que o Brasil está mais adiantado, porque tem o porto. Pecém já tem uma infraestrutura para lidar com gás natural liquefeito, que é muito parecida com a necessária para a amônia.
Nas melhores áreas [de produção] do Marrocos, não existem portos. Eles terão de ser construídos. Isso leva cinco, seis anos.
Mas isso será uma grande diferença no longo prazo? Não acho, porque a demanda será tão grande que nem o Brasil nem o Marrocos nem nenhum país será o único produtor.
Na minha visão, teremos grandes volumes produzidos no Brasil, no Marrocos, na Austrália ou na Namíbia para dar conta da demanda.
Qual seria um prazo razoável para uma decisão final de investimento no Brasil?
Estamos pensando no último trimestre de 2024. É relativamente rápido. Nossos outros projetos estão mais ou menos no mesmo ritmo. Talvez Pecém um pouco mais rápido por causa do porto.
Acredito que veremos muita coisa acontecer nestes próximos dois anos, de investimentos a contratos de compra assinados. Existe um grande ímpeto no mercado. Todo mundo percebeu que precisamos [do hidrogênio verde] por causa do clima e da geopolítica. Ficou claro que não podemos mais depender da Rússia.
Falta algo em termos de infraestrutura ou de regulamentação?
A conexão com a rede [elétrica] é a maior preocupação. Quantas plantas consomem 3 GW em uma única unidade? Veja, esse não é um problema exclusivo do Brasil, todos têm de lidar com isso.
Você também precisa de água. Sei que estão trabalhando nisso, mas temos de nos certificar de que vai haver recursos suficientes para escalar a produção.
Então eu diria que é importante ter um master plan, algo de longo prazo. Só assim os investidores vão poder dizer: “OK, os brasileiros pensaram nisso, não preciso me preocupar”.
Também sugeri que o governo do Ceará comece um processo de atração de fabricantes de eletrolisadores [os equipamentos que separam os átomos de hidrogênio e oxigênio da água usando eletricidade].
Existe muito potencial, inclusive de exportar. Como o Brasil fez anos atrás com a indústria automobilística.
Recentemente a Petrobras anunciou estudos de parques eólicos offshore em parceria com a norueguesa Equinor. Eles fariam sentido para produzir hidrogênio verde?
Olhamos pra isso. Pessoalmente, tenho experiência em eólicas offshore, trabalhei três anos na Orsted, [empresa dinamarquesa que é uma das maiores desenvolvedoras desse tipo de projeto no mundo].
O Brasil é um dos poucos lugares do mundo em que você tem condições de vento onshore [em terra firme] comparáveis às offshore. Não é como Holanda, Dinamarca ou Alemanha [que precisam das eólicas em alto-mar].
Mas essa fonte virá mais tarde. O Brasil tem tanto potencial de vento onshore, que faz muito mais sentido usar esses gigawatts primeiro. Depois de esgotada essa capacidade, você vai pro offshore.
Aí você ganha tempo para organizar as regulamentações. Estou convencido de que daqui a dez anos vamos explorar o offshore para produzir ainda mais hidrogênio verde.
Quais serão os primeiros usos do hidrogênio verde?
Acreditamos que os compradores da primeira produção serão as empresas que usam amônia hoje: indústrias de fertilizantes e químicas. É um mercado que já existe, está crescendo e que também foi afetado pela guerra.
[O mundo consome hoje] 200 milhões de toneladas de amônia por ano. Vai haver a necessidade, por exemplo, da troca da amônia cinza pela verde.
A amônia verde já pode ser competitiva hoje, por causa do preço do gás natural e da precificação do carbono. Quem entende do mercado acha que o preço não vai cair tão cedo.
E virão outros usos, como no transporte marítimo e na geração de energia, como já começa a acontecer no Japão. Dependendo da previsão que você decidir acreditar, o mercado vai crescer de três a dez vezes com essas novas aplicações.
O mercado do hidrogênio em si vai demorar um pouco mais para se desenvolver. O transporte do gás é caro e complicado, exigem temperaturas de 250 graus negativos.
Mas também haverá demanda local. Em Pecém você tem usina de energia, tem siderúrgica, tem indústrias. Então faz sentido usar uma parte do hidrogênio localmente.