Gigante do biodiesel, Brasil Biofuels está prestes a perder seis usinas na Amazônia

Empresa descumpriu contrato para fornecer energia em dez localidades paraenses usando combustível renovável; área técnica da Aneel defende cassação das concessões

Gigante do biodiesel, Brasil Biofuels está prestes a perder seis usinas na Amazônia
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Brasília – Um projeto emblemático de transição energética na Amazônia, símbolo da busca por uma matriz elétrica mais limpa, acabou se convertendo em um imbróglio sem fim, com contratos não cumpridos, troca de acusações entre empresas, multas e um processo de cassação de concessões, além de prejuízo milionário para o consumidor.

A companhia Brasil Biofuels (BBF), maior produtora da América Latina de óleo de palma e comandada pelo empresário paulista Milton Steagall, está prestes a perder seis concessões de usinas termelétricas que conquistou no Pará, com a promessa de convertê-las para funcionar com biodiesel.

O Reset obteve os detalhes de um projeto que se transformou em um pesadelo do setor elétrico e já custou R$ 91,381 milhões ao bolso do consumidor de energia.

A decisão de dar um fim aos contratos assinados com a BBF foi tomada pela área técnica da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), na semana passada. O desfecho depende da palavra final da diretoria colegiada do órgão fiscalizador. Em casos dessa natureza, a diretoria costuma seguir a orientação técnica, dada a gravidade da situação.

Por trás da recomendação técnica de anular os contratos e impor punições à BBF – atos que são considerados os de maior gravidade na relação entre empresas e o órgão de fiscalização – estão sucessivas tentativas de viabilizar as usinas de biodiesel.

O resultado, porém, descambou para o pior cenário possível.

Ganha-ganha

Em novembro de 2021, a BBF venceu um leilão para fornecer energia elétrica em dez localidades do interior do Pará. São regiões que não estão conectadas à rede nacional de transmissão, os chamados “sistemas isolados”, nas quais 96% da geração atual depende da queima de óleo diesel, insumo caro e extremamente poluente.

O plano consistia em usar biocombustível produzido a partir do óleo de palma industrializado pela BBF, por meio de parcerias comerciais.

A contratação também envolvia uma jogada com outra companhia. Em vez de construir uma usina nova em cada uma das cidades, a BBF decidiu fechar um acordo para comprar dez térmicas a diesel que já estavam em operação naquelas localidades e que pertenciam à empresa Energy Assets, um braço do Grupo Siemens Energy no Brasil.

Parecia uma operação de ganha-ganha. De um lado, a BBF adaptaria a estrutura de seis das dez usinas, permitindo a troca do óleo fóssil pelo biodiesel. As outras quatro seguiriam operando até o fim do contrato de concessão da Energy Assets. Enquanto isso, a BBF ergueria novas plantas para substituí-las.

Como se tratava de uma decisão de negócio da empresa, não houve objeção da Aneel. Para a agência, o importante era a entrega do que estava previsto em contrato, além da substituição do diesel por uma alternativa mais limpa. 

Do lado do Grupo Siemens Energy, a operação daria andamento ao seu plano de se livrar da queima de óleo, um passivo que já conflitava com seus objetivos ESG (ambientais, sociais e de governança, na sigla em inglês).

O acordo foi celebrado e a BBF assumiu o compromisso de ter usinas a biodiesel em plena operação a partir de 1° de abril de 2023.

Questionamentos

Bastaram poucos meses para que os problemas começassem a surgir. A Aneel não notava qualquer mobilização efetiva para adaptar as usinas antigas e passou a questionar a BBF sobre o assunto. Os questionamentos também partiram de deputados do Pará e de outras empresas do setor elétrico preocupadas com a garantia do abastecimento das cidades.

Em janeiro de 2023, três meses antes da data para que as usinas a biodiesel entrassem em operação, a empresa New Power Ventures (NPV), uma das que tinham disputado o leilão da Aneel em 2021, enviou carta à agência para “externar a sua preocupação” com o atraso nas obras da BBF, além de sua capacidade efetiva de cumprir os contratos. Nada havia ocorrido nas plantas.

“Reiteramos o pedido para que sejam tomadas as medidas cabíveis para a garantia de suprimento das localidades, na forma e na data comprometida”, escreveu a NPV. “Caso não seja possível, solicitamos que seja cancelada a contratação e aberta outra licitação para contratação da energia elétrica para as localidades do Estado do Pará.”

O questionamento da concorrente indignou a BBF. Em resposta, a empresa afirmou que o cronograma seria cumprido. “Não haverá nenhum segundo de atraso na entrada em operação dessas UTE’s (usinas termelétricas), pois as mesmas estão em operação nas referidas localidades”, declarou à Aneel.

“A operação que terá início em 01/04/2023 atenderá os requisitos de um novo contrato, com as características de um novo contrato, ou seja, com utilização de biodiesel, de modo que não haverá prorrogação de utilização de diesel nesses empreendimentos.” Segundo a BBF, as afirmações da concorrente não só eram improcedentes, como “beiravam a má-fé”.

Questionada sobre sua capacidade de produção de óleo de palma, a empresa respondeu que possuía 56 mil hectares de plantio de dendezeiros no Pará. É do fruto dessas palmeiras que é extraído o óleo de palma, posteriormente transformado em biodiesel. 

“Ao que parece, o agente (NVP) que encaminhou a correspondência quer entender mais do negócio da BBF do que a própria agência, o que, evidentemente, é manifestamente impertinente”, afirmou a companhia, ironizando o competidor. “O biocombustível será produzido a partir do óleo de palma industrializado pela BBF, que é a maior produtora da América Latina.”

Desavenças empresariais à parte, em abril de 2023 as térmicas seguiam queimando combustível fóssil. O Ministério de Minas e Energia se viu obrigado a publicar, em caráter emergencial, uma portaria para que as plantas seguissem em operação, já que não podia deixar dez localidades no escuro: Água Branca, Anajás, Crepurizão, Faro, Gurupá, Jacareacanga, Muaná, Porto de Moz, São Sebastião da Boa Vista e Terra Santa.

A geração total das usinas – que levam os nomes de seus municípios – soma 33,7 megawatts de potência instalada, energia suficiente para atender o consumo de aproximadamente 45 mil famílias.

Justificativas e multas

A BBF tentou se afastar da responsabilidade pelo atraso. Alegou que, somente após firmar o acordo com a Energy Assets, do Grupo Siemens Energy, a empresa teria percebido que havia pendências fundiárias e dificuldades com o licenciamento ambiental das plantas. “Começaram a surgir dúvidas até então desconhecidas”, declarou a BBF, em dezembro do ano passado.

A BBF também acusou a Energy Assets de não autorizar a sua entrada nas usinas para fazer as adaptações necessárias para a conversão ao biodiesel.  “Essa necessidade foi colocada às vendedoras, em diversas trocas de e-mails, sendo que as vendedoras sempre se mostraram contrárias ao ingresso da BBF nas usinas, antes do fechamento do negócio”, disse a companhia à Aneel.

A trama passou a incluir, também, uma acusação de suposta omissão de outros acordos financeiros firmados pela empresa da Siemens. Seria esse o motivo, segundo a BBF, de não conseguir acesso às usinas. 

“Posteriormente, a BBF veio a entender o porquê de as vendedoras sempre se mostrarem contrárias às obras de adequação, pois, na verdade, possuíam contrato de fornecimento de combustível com a Ecuador Distribuidora, cuja multa rescisória impossibilitaria o rompimento antecipado do contrato. Essa questão só foi aberta à BBF posteriormente, mediante mensagens eletrônicas”, declarou.

O Reset procurou a Energy Assets. Um porta-voz da empresa afirmou que, devido a acordos de confidencialidade, não poderia entrar em detalhes sobre contratos ou negociações em andamento. A respeito das acusações feitas pela BBF, no entanto, a empresa declarou: “A Energy Assets nega veementemente as declarações apresentadas pela Brasil Biofuels, em carta para a Aneel enviada em dezembro de 2023.”

As justificativas da BBF não convenceram a Aneel, por uma razão objetiva: assuntos empresariais e acordos bilaterais são de inteira responsabilidade da companhia. Em dezembro do ano passado, a agência impôs uma multa de R$ 4,223 milhões à BBF pelos atrasos. A empresa recorreu, usando dos mesmos argumentos. Mais uma vez, teve seu pedido rejeitado, por não apresentar “nenhum fato novo que possa alterar a decisão já proferida”.

Em janeiro deste ano, com as usinas ainda queimando óleo diesel, a BBF voltou à agência, dizendo que os técnicos da Aneel, nas conclusões de seu relatório, promoviam um “ato afobado” em relação à multa e uma possível retomada das concessões. Na semana passada, finalmente, a agência consolidou seu entendimento de que não haveria mais nada a fazer senão cassar os contratos com a empresa.

Quem paga a conta

O atraso já causou um rombo milionário aos consumidores de energia de todo o país. Dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) revelam que, apenas entre abril – data em que as plantas tinham que começar a funcionar – e dezembro de 2023, a queima de óleo diesel teve custo extra de R$ 91,381 milhões, fatura que foi paga com recursos da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), encargo cobrado na conta de luz da população.

“Não há qualquer avanço na solução das pendências burocráticas elencadas pela empresa relacionadas a questões fundiárias ou de licenciamento ambiental”, afirmou a Aneel. “Há cerca de dois anos a empresa enfrenta os mesmos problemas, sem demonstrar qualquer avanço ou solução das pendências.”

A respeito da transação com a Energy Assets, a agência afirma ainda que, “diante das sucessivas prorrogações motivadas por justificativas de pouca robustez e sem respaldo de documentação”, não há mais “confiança de que tal transferência irá efetivamente se concretizar”.

O documento, elaborado pela Superintendência de Fiscalização Técnica dos Serviços de Energia Elétrica, menciona riscos à prestação dos serviços e a “permanente incerteza” em relação à solução proposta pela BBF e recomenda a revogação das concessões.

Outro lado

O Reset questionou o Grupo BBF sobre cada um dos temas abordados nesta reportagem. Por meio de nota, a empresa afirmou que “vem prestando todos os esclarecimentos necessários às equipes da Aneel e segue confiante no andamento dos processos citados, bem como vem realizando todos os esforços necessários para possibilitar o início da operação das usinas termelétricas em questão”.

A companhia declarou que “segue firme em seu propósito de geração de energia renovável para localidades isoladas da Amazônia, onde já possui 25 usinas termelétricas em operação, atendendo cerca de 140 mil moradores por meio dos sistemas isolados”.

Na região amazônica, a empresa responde a uma série de acusações e denúncias feitas pelo Ministério Público Federal, envolvendo episódios como invasão de terras e violência contra povos indígenas.

Segundo o MPF no Pará, povos indígenas e quilombolas já apresentaram denúncia contra a empresa, relatando sucessivos episódios de uso ostensivo de força e poderio armado por funcionários, contratados e terceirizados responsáveis pelo exercício da segurança privada da BBF.

Em abril do ano passado, o Ministério Público do Pará (MPPA) acusou e chegou a pedir a prisão preventiva de Eduardo Schimmelpfeng, acionista da BBF, por suposto envolvimento com a chamada “guerra do dendê”, em atos violentos registrados no município do Acará. A empresa e o executivo negam todas as acusações.

Até setembro do ano passado, conforme informações financeiras da empresa, a BBF, que foi fundada em 2008, contava com 6.494 colaboradores diretos. Um de seus principais investimentos em andamento é a construção de uma usina em Roraima, também movida a biodiesel.

A térmica de São Joaquim prevê uma potência instalada de 56,2 megawatts produzidos com a queima de biomassa e óleo vegetal. A estimativa de investimento só neste projeto gira em torno de R$ 335 milhões, financiados pelo Banco da Amazônia.

Ocorre, porém, que o Grupo BBF vive uma grave crise financeira. No dia 8 de fevereiro, a empresa informou a seus acionistas que obteve anuência, durante assembleia geral, para apresentar um “eventual pedido de recuperação judicial”.

A empresa também ajuizou uma “tutela de urgência cautelar” no Tribunal de Justiça de São Paulo, para suspender ações e execuções processuais contra si pelo prazo de 60 dias, “com o intuito de viabilizar uma solução consensual com seus principais credores”.

O caso é acompanhado pela Câmara Especial de Resolução de Conflitos em Reestruturação de Empresas, “objetivando o equacionamento econômico-financeiro do grupo mediante a renegociação de suas principais dívidas corporativas”.