OPINIÃO

Por que o Brasil precisa dar um gás no biometano

Com vasta oferta de matérias-primas, país pode ser um líder global no gás natural renovável – mas enfrenta desafios significativos na infraestrutura e na política de incentivos

Funcionário em usina de produção de biometano
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O Brasil, país detentor de uma imensa biodiversidade e vastos recursos naturais, se encontra em uma posição privilegiada para liderar a produção sustentável de dois combustíveis que podem ter grande contribuição com a transição energética: o biogás e o biometano.

Mas essa oportunidade ainda não está sendo plenamente aproveitada. Com uma população de 215 milhões de habitantes e um território que abrange mais de 8,3 milhões de quilômetros quadrados, o Brasil apresenta um cenário contrastante quando comparado com a União Europeia, especialmente no que diz respeito à gestão de resíduos e à produção de energia renovável a partir de fontes orgânicas. O bloco tem a meta de produzir 35 bcm (bilhões de metros cúbicos) de biometano até 2030 e chegar a mais de 40% de participação no gás consumido até 2050.

Atualmente, o Brasil produz aproximadamente 2,9 bcm de biogás em 885 plantas espalhadas pelo país, sendo 74% do volume concentrado em aterros sanitários. Isso limita significativamente o potencial do país em termos de sustentabilidade e redução de emissões de gases de efeito estufa.

Em contraste, a UE, com uma população de 448 milhões de pessoas, produz 21 bcm de biogás e biometano combinados, em 19 mil plantas, o que resulta em 60 milhões de toneladas de CO2 equivalente evitadas anualmente e 230 mil empregos gerados.

Eis uma outra comparação que mostra o quanto o país pode avançar na produção do gás natural renovável. Na Alemanha, o volume per capita anual de biometano é de 109 metros cúbicos. Na Dinamarca, são 117 metros cúbicos. São países com menos habitantes que o Brasil, claro: 84 milhões e 5,9 milhões de habitantes, respectivamente.

Mesmo levando em conta essa diferença, a produção per capita nacional é de apenas 13 metros cúbicos/ano.

As emissões de metano são outro ponto crítico. No Brasil, elas chegam a 539 milhões de toneladas de CO2eq por ano, com uma média de 2,5 toneladas por habitante, valor significativamente superior à média da União Europeia, que é de 0,9 toneladas per capita.

A agricultura, e particularmente a pecuária, é a principal fonte do metano que lançamos na atmosfera. Mas a gestão de resíduos, que responde por 16% dessas emissões, também é uma área que necessita de melhorias urgentes.

A baixa taxa de reciclagem de resíduos sólidos urbanos no Brasil, inferior a 4%, contrasta fortemente com as taxas de reciclagem da Alemanha (68%) e da Dinamarca (58%), indicando uma grande oportunidade de melhoria na gestão de resíduos orgânicos para a produção de biogás.

Incentivos

A UE tem estabelecido metas ambiciosas para aumentar a produção de biometano. Esse compromisso é sustentado por uma série de políticas públicas e incentivos financeiros que visam não apenas aumentar a produção, mas também garantir que ela seja sustentável e eficiente.

Na Alemanha, por exemplo, as tarifas de energia (feed-in tariffs) para eletricidade gerada a partir de biogás são garantidas por 20 anos, o que proporciona a estabilidade necessária para atrair investimentos de longo prazo no setor.

Além disso, a União Europeia adota critérios rigorosos de sustentabilidade. Biogás e biometano precisam cumprir critérios específicos de redução de emissões de gases de efeito estufa e de gestão adequada de matérias-primas.

No Brasil, a implementação de políticas semelhantes poderia transformar o setor. A criação de tarifas de alimentação de longo prazo e a redução dos encargos fiscais para projetos que reduzem as emissões de gases de efeito estufa são medidas essenciais para atrair investimentos.

Além disso, é crucial simplificar os processos regulatórios para acelerar a aprovação de novos projetos, especialmente para pequenos produtores. Atualmente, a falta de normas claras e de incentivos específicos, como mecanismos de compra da energia elétrica com preço suficiente para o biogás, representa um grande desafio para o desenvolvimento do setor de biogás e biometano no país.

A infraestrutura é outro fator determinante para o sucesso do setor. Na Europa, a infraestrutura para distribuição e uso de biometano é altamente desenvolvida, com mais de 4 mil estações de GNV em operação.

Apesar de haver mais de 355 estações de GNV no Brasil, a maioria está concentrada em São Paulo. Aumentar a acessibilidade e a utilidade do biometano em outras regiões do país permitiria sua integração na matriz energética brasileira, especialmente no setor de transporte, em que o Brasil já utiliza 20% de energia renovável, com uma meta de atingir 30% até 2030.

Educação, capacitação e cooperação internacional também são aspectos cruciais para o desenvolvimento dessas fontes de energia limpa no país.

Combustível do futuro

O Projeto de Lei do Combustível do Futuro (PL 528), aprovado recentemente no Congresso, estabelece uma série de instrumentos econômicos para promover a produção e o uso de combustíveis renováveis, como o biometano e os combustíveis sintéticos.

Entre os principais mecanismos estão a redução de impostos sobre a produção e consumo desses combustíveis, além de investimentos que podem alcançar R$ 1 trilhão, destinados a fomentar a transição energética e a descarbonização da matriz de transportes. O PL também inclui programas como o de combustível sustentável de aviação (SAF) e um marco regulatório para captura e estocagem de dióxido de carbono, reforçando o compromisso com a sustentabilidade e a inovação.

As disposições sobre o biometano foram muito criticadas, particularmente em relação à obrigatoriedade de compra por produtores e importadores de gás natural. 

A inclusão do biometano na matriz energética brasileira é uma estratégia crucial para cumprir as metas do Acordo de Paris, reduzir a dependência de combustíveis fósseis e melhorar a qualidade do ar. As alegações de impacto financeiro elevado devem ser balanceadas com os benefícios sociais e ambientais de longo prazo, como a melhoria da saúde pública devido à redução de emissões.

Além disso, a experiência europeia mostra que a integração do biometano não compromete a competitividade, especialmente com a adoção do certificado de origem no âmbito do Combustível do Futuro, com o objetivo de compensar a diferença de preço entre o gás natural e o renovável e garantir, a partir de 2026, a injeção de 1 até 10% de biometano na rede de gás.

Em vez de desencorajar o investimento, a adoção de políticas de incentivo ao biometano pode catalisar a inovação tecnológica, atrair novos investimentos e promover um crescimento econômico sustentável, alinhado com as melhores práticas internacionais de sustentabilidade e combate às mudanças climáticas.

É essencial que as autoridades brasileiras reconheçam a urgência da transição energética de baixo carbono e atuem de forma decisiva para implementar as políticas, infraestruturas e incentivos necessários, garantindo um futuro mais limpo e sustentável para as próximas gerações.

* Yuri Schmitke é presidente executivo da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (ABREN), vice-presidente LatAm do WtERT e Sócio da Girardi & Schmitke Advogados