A Raízen deve concluir na próxima semana o maior IPO do ano na B3, ancorado essencialmente numa tese de transição energética.
Mais que uma distribuidora de combustíveis ou usina de açúcar e álcool, a joint venture entre a Cosan e o grupo Shell está se apresentando como um veículo bem posicionado para apostar na onda global de descarbonização — ampliando seu escopo para os mercados internacionais com um novo tipo de etanol, produzido a partir do bagaço da cana.
Com uma história ainda muito dependente de um negócio embrionário, a companhia teve que abaixar a ambição de valuation, dos R$ 90 bilhões inicialmente testados com o mercado, para algo mais próximo de R$ 70 bilhões.
Apesar de a demanda estar robusta, com o livro de ofertas já coberto, tudo indica que a operação tende a ficar mais próxima do piso da faixa indicativa, de R$ 7,40 a R$ 9,60 por ação. A definição do preço está prevista para a terça-feira (3) e oferta pode captar entre R$ 6 bi e R$ 10 bi.
Velha conhecida do mercado sob o guarda-chuva da Cosan, com o IPO, a Raízen marca uma nova fase da companhia, que decidiu vestir de vez uma roupagem ESG e está atraindo fundos estrangeiros, alguns deles com mandatos verdes, para a sua base acionária.
O principal vetor da transformação na companhia atende por um acrônimo parecido: E2G, o etanol de segunda geração — que é feito a partir dos resíduos que normalmente são descartados após a produção do etanol tradicional, como o bagaço e a palha da cana, dentro do conceito de economia circular.
Com a produção sendo testada desde 2014 e hoje feita em apenas uma planta, a companhia agora quer escalar a tecnologia para mais de 20 unidades até o fim da década.
É um plano ambicioso: hoje, a Raízen opera ao todo 26 usinas de açúcar e etanol convencional (ou de 1ª geração).
Nas conversas com investidores, a companhia vem sinalizando que, se cumprir seu plano, mais da metade do Ebitda pode vir do novo negócio — incluindo aí também o biogás produzido a partir dos resíduos da cana — nos próximos 10 anos.
“Eles estão muito bem posicionados em segunda geração, não tem mais ninguém com essa tecnologia, com essa escala e acesso direto à matéria-prima”, aponta um gestor de um fundo doméstico que vai entrar na oferta.
O E2G é capaz de aumentar a produção de etanol em até 50% utilizando a mesma área de cana. Mas, além do aumento de produtividade, o que ele faz é abrir um novo mercado global para a Raízen.
Na União Europeia, há mandatos de mistura de biocombustíveis nos fósseis, mas há também uma grande preocupação em não utilizar matérias-primas que possam competir com a produção de alimentos. Por isso, boa parte da mistura precisa vir de resíduos, caso do E2G.
Durante o roadshow, a companhia afirmou que já tem contratos de longo prazo fechados com grandes empresas estrangeiras para colocar de pé as duas próximas plantas, previstas para entrar em operação em 2023, com preços 70% acima do etanol tradicional. Por conta dos prêmios, a empresa tem sinalizado que a taxa interna de retorno dessas usinas ficará entre 30% e 35%.
O futuro do etanol
Com o histórico de criação de valor da controladora Cosan, os investidores não têm muitas dúvidas quanto à capacidade de execução da Raízen.
“A Cosan se mostrou um dos melhores alocadores de capital da bolsa, tanto na Raízen quanto em outros negócios, e está prevendo investir bilhões em E2G nos próximos anos. Eles não rasgam dinheiro”, aponta um gestor.
A grande questão para os mais céticos é qual será o lugar do etanol num mundo em que há uma corrida por tecnologias mais limpas para substituir os fósseis — e em que os mandatos e subsídios governamentais podem direcionar a agenda.
“Hoje, a Raízen consegue vender o E2G com prêmio de 100%, 70%, mas qual será esse prêmio lá na frente?”, questiona um gestor um pouco mais cético com a tese, ressaltando que a tecnologia se tornou escalável não por uma redução de custo de produção, mas pelo preço maior que o mercado está disposto a pagar.
“Tem outras empresas competindo nesse universo, e não dá pra saber como esse prêmio vai ficar. Pode ser que ele caia muito, pode ser que ele dobre. É pagar na frente por algo que hoje não temos muita visibilidade.”
A Raízen tem firmado contratos com grandes empresas de energia na Europa e clientes industriais na Ásia, que querem tirar o fóssil da produção, e vê também demanda forte nos Estados Unidos. Há ainda um mercado nas indústrias cosmética e farmacêutica, que usam álcool como insumo para seus produtos.
Os analistas veem alguns grandes mercados para o etanol de segunda geração.
Em primeiro lugar, como combustíveis para automóveis nas misturas com gasolina — ao menos enquanto a eletrificação não se completa e enquanto as matrizes elétricas nas maiores economias ainda forem muito dependentes de fósseis. (Os mais otimistas apostam que podem avançar as tecnologias de célula combustível a etanol, o que permitiria o uso em carros elétricos.)
“Vejo também muito potencial no etanol como combustível para setores onde é mais difícil cortar emissões ou pensar em eletrificação, como o de aviação ou indústria petroquímica, para o plástico verde”, diz o analista de um grande fundo carioca que também está entrando na operação.
Quer pagar quanto?
Se pouca gente duvida do potencial do novo negócio, o fato é que o mercado não está disposto a pagar tanto na frente por ele.
No piso da faixa, a Raízen está sendo negociada a cerca de 8 a 9 vezes seu Ebitda para o próximo ano, com um prêmio de 15% a 20% frente aos pares listados de cada uma das suas linhas de negócios — no de açúcar e álcool, a São Martinho, e no de distribuição de combustíveis, a BR Distribuidora — estima um gestor, num conta que considera o peso de cada divisão.
“É um prêmio merecido pela capacidade de execução da Raízen e mostra que o negócio de segunda geração vem quase como opcionalidade”, aponta.
Na parte do negócio que chamam de ‘Raízen de hoje’, os investidores têm apostado ainda nos ganhos a serem capturados com a aquisição da sucroalcooleira Biosev, feita no começo deste ano, e veem potencial de extração de valor em lojas de conveniência a partir de uma joint venture com a mexicana Femsa, dona das lojas de proximidade Oxxo.
Já na ‘Raízen do futuro’, em conversas com investidores, a companhia tem se comparado com a finlandesa Neste, que produz biodiesel principalmente a partir de resíduos (de palha agrícola até gordura animal) e vale hoje 40 bilhões de euros na bolsa. É um múltiplo de 20 vezes Ebitda.
“Não dá pra comparar exatamente com a Neste, porque ela vende biodiesel, voltado para veículos pesados, onde a eletrificação é mais difícil, e não tem os outros negócios, de açúcar e postos. Mas dá uma medida do potencial do E2G na Raízen”, aponta um outro analista.
(Em tempo: a Raízen trouxe uma conselheira da Neste, Sonat Burman-Olsson para o seu board.)
O lado B
Apesar de estar atraindo investidores ESG para a base acionária, alguns fundos mais restritos têm alguma dificuldade de enquadrar a companhia nos seus mandatos, pela participação no setor de distribuição de combustíveis, que responde por mais da metade do faturamento, e inclui fósseis, e pelas atividades na Argentina, que incluem refinarias.
Além disso, a companhia optou por emitir apenas ações preferenciais, sendo listada no Nível 2 da B3, em vez de ir para o Novo Mercado, com padrões mais elevados de governança, que só permite a existência de ações ON. Nos bastidores, especula-se que a Shell não estaria feliz com o valor atribuído à empresa e teria buscado a menor diluição possível ao preço atual.
O percentual de ações que será negociado em bolsa vai ser pequeno, atingindo o máximo de 10,7% do capital se os lotes extra forem exercidos. Para viabilizar a oferta mesmo sem o mínimo de 25% de free float exigido, a Raízen teve que pedir dispensa do requisito à B3, e ainda aguarda resposta.
No pedido, a Raízen propôs manter ao menos 9% de suas ações em negociação e se comprometeu a aumentar esse percentual para 15% até 31 de dezembro de 2022. Se essa meta não for cumprida, o grupo se dispôs a ceder uma cadeira de seu conselho de administração aos minoritários, com garantia de votação em separado.