BIOCOMBUSTÍVEIS

Com 5 anos, mercado de carbono de combustíveis no Brasil ainda patina

Problemas no RenovaBio mostram a complexidade dos mecanismo que incentivam a descarbonização – e podem trazer lições para o futuro mercado regulado nacional

Com 5 anos, mercado de carbono de combustíveis no Brasil ainda patina

A lei que cria um mercado regulado de carbono no Brasil foi sancionada em dezembro passado. Regulamentação e implementação ainda levarão anos, o que significa uma longa espera até que o sistema de comércio de emissões esteja funcionando de fato. Mas o país já conta com um minimercado de carbono setorial – e a experiência deixa claros os desafios de colocar em prática um mecanismo de mercado que incentive a transição energética. 

O RenovaBio é uma política que nasceu em 2017 com o objetivo de fortalecer a descarbonização da matriz energética brasileira, especificamente no setor de combustíveis. Para esse fim, determina incentivos para que distribuidoras priorizem biocombustíveis em detrimento das alternativas fósseis. 

O principal instrumento do programa é a negociação dos créditos de descarbonização, apelidados de CBIOs. De um lado, as distribuidoras, que faturam com combustíveis fósseis, são obrigadas a comprar CBIOs. Do outro estão as usinas produtoras de biocombustíveis, que, uma vez certificadas, podem emitir esses créditos e vendê-los no mercado. 

Cada CBIO equivale a uma tonelada de CO2 que deixou de ser emitida ao se colocar no mercado etanol ou biodiesel em vez de gasolina, por exemplo. 

As primeiras negociações desse mercado foram feitas há cinco anos. Desde então, o RenovaBio lida com uma série de percalços, que vão do descumprimento das regras por alguns participantes à falta de previsibilidade quanto ao preço do CBIO.

Apesar das diferenças estruturais entre as duas políticas, o histórico do RenovaBio indica os potenciais obstáculos – ou talvez dores do crescimento – que o mercado regulado de carbono pode enfrentar. Estão sujeitas às regras do RenovaBio 160 empresas, de um único setor. Estima-se que o mercado de carbono atinja 5 mil das empresas mais poluentes do país. 

Também em dezembro, foi sancionada a lei 15.082/2024, com o objetivo de aprimorar o marco regulatório que sustenta o programa – mas muitos têm dúvidas sobre a eficácia das medidas.

Como funciona o RenovaBio

A premissa básica do RenovaBio é aumentar progressivamente as obrigações de compra dos créditos por parte das distribuidoras. Em tese, o preço dos CBIOs vai aumentando, o que torna a descarbonização mais atraente que a compensação. 

O Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) determina uma meta nacional – que cresce ano a ano – da quantidade de CBIOs a serem adquiridos e aposentados (ou seja, usados para compensação) no período. Esse total é, então, repartido pela Agência Nacional de Petróleo (ANP), que regula o programa, entre as distribuidoras. O cálculo se baseia na participação do mercado de fósseis no ano anterior. 

Ou seja: quem vende mais combustíveis que lançam CO2 na atmosfera deve comprar mais créditos. Para este ano, por exemplo, a meta preliminar é de 40,39 milhões de CBIOs, com as principais compras a serem feitas pela Vibra (22,6%), Ipiranga (17,5%) e Raízen (16,4%).

Um dos problemas do sistema, segundo os críticos, é que essas metas mudam com frequência. A ANP já prorrogou ou reduziu suas metas anuais algumas vezes ao longo dos anos. 

Mas o principal ponto de discórdia é o não-cumprimento dessas obrigações por algumas das companhias. 

As gigantes do setor têm cumprido suas metas – e as duas maiores compradoras passaram a se incomodar com a base de inadimplentes. Em junho passado, Vibra e Ipiranga estavam prontas para entrar na Justiça e questionar a obrigatoriedade da compra de CBIOs, segundo a Reuters.

Sem adquirir créditos, essas distribuidoras tinham maior competitividade em determinadas praças, já que esse custo não era repassado aos consumidores. Apesar dos rumores, a ação judicial não se concretizou.

“Aquele foi o pior momento para o mercado de CBIOs. Havia uma crença de boa parte do mercado de que as negociações desses créditos poderiam acabar. Não havia sinalização institucional por mudanças e o preço despencou”, diz Heloisa Baldin, cofundadora da Iwá, gestora focada nos ativos. O preço médio do CBIO caiu de R$ 116,92 em meados de janeiro de 2024 para R$ 65,82 no início de junho. 

O incômodo teria se dado porque a participação dos inadimplentes tem aumentado ao longo dos anos do RenovaBio, aponta o Itaú BBA. Com preços mais competitivos, elas ganham mercado – o que aumenta suas obrigações de compra.

Aperto no cerco

Lidar com a inadimplência está no centro da lei sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no último dia 30 de dezembro. O texto determina que o não-cumprimento da meta pela distribuidora irá configurar crime ambiental e sujeitar a empresa e seus dirigentes a penas como detenção de um a três anos e multa proporcional à quantidade de CBIOs que deixou de ser adquirida e aposentada. 

A multa pode variar entre R$ 100 mil e R$ 500 milhões. 

“O que a lei está dizendo [às empresas] é: posso te cobrar uns trocos ou te quebrar financeiramente para sempre”, afirma Werner Grau, advogado e sócio do escritório Pinheiro Neto. “A multa não pode ser uma punição de excesso. Quando começa a aumentar muito seu valor, ela fica sem sentido. O que precisamos é de um mercado estimulado.”

Outro artigo determina que os produtores, comercializadores e demais fornecedores de combustíveis fósseis e renováveis ficam vedados de comercializar qualquer combustível para o distribuidor que esteja inadimplente em sua meta individual.

“Quando você coloca o ônus sobre o comprador, ele pode buscar uma liminar, judicializar e pegar uma autorização para comprar o produto. Por outro lado, quando o vendedor não pode vender para quem está inadimplente, ele vai apenas vender para outro cliente”, afirma Boris Gancev, responsável pelas operações de commodities e na tesouraria do Banco Santander. “Você fecha a torneira para os inadimplentes. Acredito que essa é a medida mais impactante e estamos enxergando que pode ser efetiva”. 

O Santander é o principal escriturador de CBIOs do país e participou da maior parte das operações. Segundo Gancev, desde o início do ano, tem havido um aumento no interesse de compra por companhias que até então não buscavam ativos no banco.

“O RenovaBio é um programa muito exitoso. Acredito que essa nova lei vai ajudar a reduzir a inadimplência e fazer com que a compra e o repasse do custo do CBIO para o preço do [combustível] fóssil fique mais sincronizado”, afirma o executivo. 

A lei também determinou que produtores independentes de cana deverão receber ao menos 60% da receita obtida pelas usinas com a venda dos CBIOs. 

Mas e o preço?

Uma crítica comum ao RenovaBio é a falta de previsibilidade para o mercado de CBIOs, em preço e em volume. 

O programa tem uma projeção da meta nacional de CBIOs para o decênio até 2033, mas as metas são revistas a cada ano e possivelmente alteradas a depender, por exemplo, da projeção para a oferta de biocombustíveis e, consequentemente, de CBIOs.

As usinas de cana-de-açúcar, por exemplo, podem escolher entre vender açúcar ou etanol, conforme o preço. Se a projeção for de alta do do açúcar, elas podem optar por vender mais açúcar, produzir menos etanol e emitir menos CBIOs. Esse é um dos motivos que levam a ANP a rever a meta anual. 

O CBIO, em teoria, deveria funcionar como um estímulo para as usinas produzirem biocombustíveis e terem um acréscimo na receita. Hoje, porém, esse prêmio representa cerca de 2% da receita do etanol, em média, diz Gancev. “É muito pouco para que a usina mude sua produção ou constra outra planta. Em média, uma usina precisa vender 850 litros de etanol hidratado para emitir um único CBIO.”

O volume necessário do combustível varia a depender da nota de eficiência energética obtida. O Reset explica melhor esse conceito neste guia.

Com as prorrogações ou alterações de metas, as forças para que o preço do CBIO suba se esvaem. Como a demanda é regulatória, estipulada pela meta de descarbonização, não há elasticidade entre ela e o preço do ativo, afirma Gancev. “Este é um problema estrutural do programa.”

Após as mudanças, o que esperar nos próximos meses? “Conflito”, diz Grau, que afirma que a nova lei traz avanços apenas marginais. O problema central de oferta e demanda segue inalterado, segundo ele. “Mas dos conflitos surgem as soluções.”

Com 5 anos, mercado de carbono de combustíveis no Brasil ainda patina

Problemas no RenovaBio mostram a complexidade dos mecanismo que incentivam a descarbonização – e podem trazer lições para o futuro mercado regulado nacional

A lei que cria um mercado regulado de carbono no Brasil foi sancionada em dezembro passado. Regulamentação e implementação ainda levarão anos, o que significa uma longa espera até que o sistema de comércio de emissões esteja funcionando de fato. Mas o país já conta com um minimercado de carbono setorial – e a experiência deixa claros os desafios de colocar em prática um mecanismo de mercado que incentive a transição energética. 

O RenovaBio é uma política que nasceu em 2017 com o objetivo de fortalecer a descarbonização da matriz energética brasileira, especificamente no setor de combustíveis. Para esse fim, determina incentivos para que distribuidoras priorizem biocombustíveis em detrimento das alternativas fósseis. 

O principal instrumento do programa é a negociação dos créditos de descarbonização, apelidados de CBIOs. De um lado, as distribuidoras, que faturam com combustíveis fósseis, são obrigadas a comprar CBIOs. Do outro estão as usinas produtoras de biocombustíveis, que, uma vez certificadas, podem emitir esses créditos e vendê-los no mercado. 

Cada CBIO equivale a uma tonelada de CO2 que deixou de ser emitida ao se colocar no mercado etanol ou biodiesel em vez de gasolina, por exemplo. 

As primeiras negociações desse mercado foram feitas há cinco anos. Desde então, o RenovaBio lida com uma série de percalços, que vão do descumprimento das regras por alguns participantes à falta de previsibilidade quanto ao preço do CBIO.

Apesar das diferenças estruturais entre as duas políticas, o histórico do RenovaBio indica os potenciais obstáculos – ou talvez dores do crescimento – que o mercado regulado de carbono pode enfrentar. Estão sujeitas às regras do RenovaBio 160 empresas, de um único setor. Estima-se que o mercado de carbono atinja 5 mil das empresas mais poluentes do país. 

Também em dezembro, foi sancionada a lei 15.082/2024, com o objetivo de aprimorar o marco regulatório que sustenta o programa – mas muitos têm dúvidas sobre a eficácia das medidas.

Como funciona o RenovaBio

A premissa básica do RenovaBio é aumentar progressivamente as obrigações de compra dos créditos por parte das distribuidoras. Em tese, o preço dos CBIOs vai aumentando, o que torna a descarbonização mais atraente que a compensação. 

O Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) determina uma meta nacional – que cresce ano a ano – da quantidade de CBIOs a serem adquiridos e aposentados (ou seja, usados para compensação) no período. Esse total é, então, repartido pela Agência Nacional de Petróleo (ANP), que regula o programa, entre as distribuidoras. O cálculo se baseia na participação do mercado de fósseis no ano anterior. 

Ou seja: quem vende mais combustíveis que lançam CO2 na atmosfera deve comprar mais créditos. Para este ano, por exemplo, a meta preliminar é de 40,39 milhões de CBIOs, com as principais compras a serem feitas pela Vibra (22,6%), Ipiranga (17,5%) e Raízen (16,4%).

Um dos problemas do sistema, segundo os críticos, é que essas metas mudam com frequência. A ANP já prorrogou ou reduziu suas metas anuais algumas vezes ao longo dos anos. 

Mas o principal ponto de discórdia é o não-cumprimento dessas obrigações por algumas das companhias. 

As gigantes do setor têm cumprido suas metas – e as duas maiores compradoras passaram a se incomodar com a base de inadimplentes. Em junho passado, Vibra e Ipiranga estavam prontas para entrar na Justiça e questionar a obrigatoriedade da compra de CBIOs, segundo a Reuters.

Sem adquirir créditos, essas distribuidoras tinham maior competitividade em determinadas praças, já que esse custo não era repassado aos consumidores. Apesar dos rumores, a ação judicial não se concretizou.

“Aquele foi o pior momento para o mercado de CBIOs. Havia uma crença de boa parte do mercado de que as negociações desses créditos poderiam acabar. Não havia sinalização institucional por mudanças e o preço despencou”, diz Heloisa Baldin, cofundadora da Iwá, gestora focada nos ativos. O preço médio do CBIO caiu de R$ 116,92 em meados de janeiro de 2024 para R$ 65,82 no início de junho. 

O incômodo teria se dado porque a participação dos inadimplentes tem aumentado ao longo dos anos do RenovaBio, aponta o Itaú BBA. Com preços mais competitivos, elas ganham mercado – o que aumenta suas obrigações de compra.

Aperto no cerco

Lidar com a inadimplência está no centro da lei sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no último dia 30 de dezembro. O texto determina que o não-cumprimento da meta pela distribuidora irá configurar crime ambiental e sujeitar a empresa e seus dirigentes a penas como detenção de um a três anos e multa proporcional à quantidade de CBIOs que deixou de ser adquirida e aposentada. 

A multa pode variar entre R$ 100 mil e R$ 500 milhões. 

“O que a lei está dizendo [às empresas] é: posso te cobrar uns trocos ou te quebrar financeiramente para sempre”, afirma Werner Grau, advogado e sócio do escritório Pinheiro Neto. “A multa não pode ser uma punição de excesso. Quando começa a aumentar muito seu valor, ela fica sem sentido. O que precisamos é de um mercado estimulado.”

Outro artigo determina que os produtores, comercializadores e demais fornecedores de combustíveis fósseis e renováveis ficam vedados de comercializar qualquer combustível para o distribuidor que esteja inadimplente em sua meta individual.

“Quando você coloca o ônus sobre o comprador, ele pode buscar uma liminar, judicializar e pegar uma autorização para comprar o produto. Por outro lado, quando o vendedor não pode vender para quem está inadimplente, ele vai apenas vender para outro cliente”, afirma Boris Gancev, responsável pelas operações de commodities e na tesouraria do Banco Santander. “Você fecha a torneira para os inadimplentes. Acredito que essa é a medida mais impactante e estamos enxergando que pode ser efetiva”. 

O Santander é o principal escriturador de CBIOs do país e participou da maior parte das operações. Segundo Gancev, desde o início do ano, tem havido um aumento no interesse de compra por companhias que até então não buscavam ativos no banco.

“O RenovaBio é um programa muito exitoso. Acredito que essa nova lei vai ajudar a reduzir a inadimplência e fazer com que a compra e o repasse do custo do CBIO para o preço do [combustível] fóssil fique mais sincronizado”, afirma o executivo. 

A lei também determinou que produtores independentes de cana deverão receber ao menos 60% da receita obtida pelas usinas com a venda dos CBIOs. 

Mas e o preço?

Uma crítica comum ao RenovaBio é a falta de previsibilidade para o mercado de CBIOs, em preço e em volume. 

O programa tem uma projeção da meta nacional de CBIOs para o decênio até 2033, mas as metas são revistas a cada ano e possivelmente alteradas a depender, por exemplo, da projeção para a oferta de biocombustíveis e, consequentemente, de CBIOs.

As usinas de cana-de-açúcar, por exemplo, podem escolher entre vender açúcar ou etanol, conforme o preço. Se a projeção for de alta do do açúcar, elas podem optar por vender mais açúcar, produzir menos etanol e emitir menos CBIOs. Esse é um dos motivos que levam a ANP a rever a meta anual. 

O CBIO, em teoria, deveria funcionar como um estímulo para as usinas produzirem biocombustíveis e terem um acréscimo na receita. Hoje, porém, esse prêmio representa cerca de 2% da receita do etanol, em média, diz Gancev. “É muito pouco para que a usina mude sua produção ou constra outra planta. Em média, uma usina precisa vender 850 litros de etanol hidratado para emitir um único CBIO.”

O volume necessário do combustível varia a depender da nota de eficiência energética obtida. O Reset explica melhor esse conceito neste guia.

Com as prorrogações ou alterações de metas, as forças para que o preço do CBIO suba se esvaem. Como a demanda é regulatória, estipulada pela meta de descarbonização, não há elasticidade entre ela e o preço do ativo, afirma Gancev. “Este é um problema estrutural do programa.”

Após as mudanças, o que esperar nos próximos meses? “Conflito”, diz Grau, que afirma que a nova lei traz avanços apenas marginais. O problema central de oferta e demanda segue inalterado, segundo ele. “Mas dos conflitos surgem as soluções.”