BIOCOMBUSTÍVEIS

A saga do caminhão movido a biometano para rodar nas estradas do país

Scania desenvolve caminhões que usam o gás verde, mas enfrenta a carência de infraestrutura de abastecimento no país para ver as vendas crescer 

A saga do caminhão movido a biometano para rodar nas estradas do país

A equipe da Scania no Brasil tenta, há alguns meses, resolver um quebra-cabeça: como fazer um caminhão movido a biometano viajar de São Paulo até Belém, para ser exibido durante a COP30, em novembro. 

O caminho mais curto, de 3 mil quilômetros pelo interior do país, não oferece opções para abastecimento ao norte de Goiás. O mais longo, com mais de 4,5 mil quilômetros pelo litoral, permite chegar até Pernambuco, e só.

Caminhões a diesel poderiam acompanhar o trajeto, carregando o biometano necessário para reabastecer o colega – um jeito seguro de completar a viagem, mas nada charmoso, uma vez que o objetivo é eliminar o uso do combustível fóssil. 

“Não queríamos usar um caminhão acompanhante. Vamos tentar resolver de outra forma. Precisamos de um ecossistema que não existe ainda”, diz Patrícia Acioli, diretora de sustentabilidade da Scania.

O problema ilustra a situação do biometano no Brasil. Desde 2019 a Scania vende caminhões movidos a gás e/ou biometano – eles funcionam com os dois combustíveis – no país. Foram 1.500 unidades vendidas até 2024 e projeção de outras mil até o fim deste ano.. 

O biometano é produzido a partir do biogás gerado a partir de resíduos da agropecuária, vegetais ou animais, além de operações de coleta de esgoto e aterros sanitários das cidades. Mas hoje quase todo esse gás produzido naturalmente escapa para a atmosfera – o país aproveita apenas 1,5% do potencial existente, segundo a Abiogás, associação que reúne mais de 165 empresas interessadas no biocombustível, incluindo o agronegócio, gestoras de aterros, fabricantes de equipamentos e concessionárias de saneamento, gás e energia. 

Há excelentes motivos para esse interesse: o biometano é um substituto limpo, barato e abundante para combustíveis fósseis, como o diesel, a gasolina, o Gás Natural Veicular (GNV) e o Gás Liquefeito de Petróleo (GLP). O produto reduz emissões de carbono em mais de 90%, em dois momentos de seu ciclo – ao evitar a queima do diesel e ao impedir o escape do metano de matéria orgânica em decomposição diretamente para a atmosfera. 

Além disso, sua produção é 100% nacional, o que aqueceria economias locais e tenderia a torná-lo mais barato que o diesel. A Lei do Combustível do Futuro, de 2024, deve ajudar a acelerar a transição, ao obrigar a mistura de 1% (inicialmente) de biometano ao gás natural no Brasil, a partir de 2026. 

O problema é que faltam produtores, distribuidores e certificadores aptos a purificar o biogás, a fim de obter o biometano, garantir sua qualidade e levá-lo até o consumidor, seja por dutos ou em veículos de carga. 

“Precisamos de uma certificação mais simples e de mais dutos pelo país, como em corredores verdes para indústrias, com uso de gás natural”, diz Yuri Schmitke, presidente executivo da Associação Brasileira de Energia de Resíduos (Abren). “Qualquer infraestrutura para gás natural vai servir também para biometano.” Os dois combustíveis são intercambiáveis e podem ser misturados em qualquer proporção.

Preencher essas lacunas geraria vantagens para toda a sociedade, já que, com adaptações, o biometano também pode substituir o diesel em máquinas industriais de todos os setores. 

Parceiros

O trabalho da Scania em biocombustíveis vem mostrando que oferecer um bom produto ao mercado não basta. “Durante o processo, entendemos que é necessário trabalhar mais com os parceiros, para gerar a transformação sistêmica que queremos”, afirma Acioli.

Entre os parceiros atuais na empreitada do biometano estão a Gás Verde e a L’Oreal. A Gás Verde tem duas usinas que produzem biometano atualmente e espera chegar a 12 até 2028. Oferece serviços de descarbonização de frotas, aluguel de caminhões a biometano (fabricados pela Scania), plano de manutenção dos veículos e garantia de abastecimento em vias do Sudeste. 

A empresa trabalha também com outras opções para reduzir o uso de combustíveis fósseis, mas reserva lugar especial ao biometano em seus planos. “É um biocombustível premium e a melhor alternativa para uma descarbonização eficiente, tanto de frotas leves quanto pesadas”, afirma Marcel Jorand, CEO da Gás Verde.

Já a gigante de cosméticos L’Oréal transporta mais da metade do peso total de sua carga em veículos a biometano e inaugurou, em 2024, o primeiro posto do Brasil dedicado a esse biocombustível, ao lado do seu Centro de Distribuição Gaia, em Jarinu (SP). “O uso da rede de gasodutos de GNV [gás natural veicular] e a colaboração com montadoras para viabilizar a produção local de caminhões são soluções cruciais para impulsionar o uso do biometano”, diz Juliana Fleming, diretora de operações da L’Oréal no Brasil.

O Mercado Livre também tem uma frota de caminhões movidos a gás natural. No Brasil, 15 deles funcionam com biometano. No Ceará, a GNR Fortaleza produz o biocombustível a partir de resíduos urbanos, enquanto a Cegás (Companhia de Gás do Ceará) o distribui por duto. 

No Paraná, está em funcionamento o primeiro corredor rodoviário sustentável do país, ligando Paranaguá a Londrina, com 11 postos de abastecimento para veículos leves e pesados movidos a gás natural e biometano. O objetivo inicial do governo do Estado é chegar a 4.600 quilômetros de corredores, atravessando 147 municípios. 

A Scania fechou acordo com a Comgás, maior distribuidora de gás natural do país, para difundir o GNV e o biometano entre os veículos de carga. A ideia é tornar mais fácil para empresas e motoristas identificar as rotas possíveis com abastecimento e levar esses combustíveis a mais postos.

No mapa de produção de gás no Brasil, organizado pelo Pacto Global da ONU no relatório “Transporte Comercial Net Zero 2050”, ainda há um imenso vazio em grande parte do Centro-Oeste e do Norte, uma área que ocupa a maior parte do território nacional – é o que dificulta a viagem do caminhão da Scania de São Paulo a Belém. 

A expectativa é de que, se as iniciativas em andamento tiverem o efeito catalisador desejado sobre mais empresas, nas cidades e no campo, em parceria com prefeituras e governos estaduais, o mapa fique mais coberto. Seria uma mudança importante para o transporte de carga, um setor que globalmente responde por 8% das emissões de carbono e tem dificuldade de mitigação. 

Redução das emissões 

O uso do biometano é ferramenta importante da Scania rumo ao cumprimento de seus objetivos de descarbonização no escopo 3 – que diz respeito às emissões indiretas de gases de efeito estufa, seja na cadeia de valor ou no uso dos produtos. 

A empresa sueca tem suas metas globais aprovadas pelo SBTi (Science Based Target Initiative), entidade que dá o selo de maior prestígio para os planos de descarbonização corporativos. O compromisso era reduzir em 20% as emissões indiretas entre 2015 e 2025 – a redução deve ficar próxima de 12%. Este ano a meta foi redefinida para 45% no escopo 3, de 2022 a 2032.

Apesar dos avanços tecnológicos, ainda há entraves. O esforço de pesquisa e desenvolvimento da empresa na Suécia trombou durante algum tempo com a autonomia, que não se comparava à dos motores a diesel. 

A adoção de tanques de combustível duplos, feitos de fibra de carbono e com gás liquefeito sob alta pressão garantiram o ganho necessário neste quesito – um primeiro salto para 800 km em 2017, hoje chegando a mais de 1.800 km nos modelos para viagens mais longas (o modelo à disposição no Brasil atualmente tem autonomia de 650 km).

A rede britânica de supermercados Waitrose foi uma das primeiras grandes clientes da Scania no exterior, em 2017. Naquele momento, o caminhão a biometano era 50% mais caro que o equivalente a diesel, mas o valor do biocombustível, bem mais baixo, permitia cobrir a diferença em até três anos, segundo análise do Instituto de Engenheiros Mecânicos do Reino Unido.  

Depois vieram duas transportadoras, a finlandesa Kuljetus Luokkala Oy, que testou os veículos nas partes mais remotas e geladas da Europa, e a belga Van de Poel, que experimentou elevar gradualmente a parcela de biometano no gás natural que usava como combustível, sem fazer nenhuma adaptação nos caminhões. 

Na União Europeia, a Scania tornou-se uma das fundadoras da Parceria Industrial do Biometano, criada em 2022 com a meta de multiplicar por dez, até 2030, a produção e consumo do gás.

No Brasil, a companhia investiu R$ 2,6 bilhões na operação em São Bernardo do Campo (SP), entre 2016 e 2020, para trazer as novas tecnologias ao país, adaptar o complexo industrial e introduzir sua “nova geração” de caminhões. São veículos a biocombustíveis ou elétricos, mais eficientes e com mais tecnologia de apoio ao motorista. Entre 2020 e 2024 foram outros R$ 1,4 bilhão investidos.

Para Acioli, da Scania, essa transição não é coisa do futuro, mas do presente. “O biometano deixou de ser apenas possibilidade e virou realidade. A sociedade acordou para isso.”