A Eneva está levantando até R$ 1 bilhão em duas séries de debêntures e, segundo informações do prospecto da oferta, mandatou a SITAWI Finanças do Bem para dar um parecer sobre a eventual “adicionalidade ambiental e climática” dos projetos a serem financiados pela segunda série da emissão.
A informação foi destacada pela repórter Graziella Valenti, na Exame IN.
Um selo verde para térmica a gás? Mais ou menos.
A emissão de dívida pode sair, mais precisamente, como um ‘título de transição’, rótulo voltado a empresas emissoras de carbono e que não estão aptas a receber o selo verde, mas que estariam justamente buscando financiar sua gradual transição rumo a uma operação ambientalmente sustentável.
Caso o selo se confirme, seria a primeira emissão do tipo no mercado interno.
A discussão é polêmica, mas atribuir um selo com alguma tonalidade de verde a um projeto de gás natural pode ser esticar um tanto a corda.
O combustível garante certa estabilidade ao sistema elétrico frente a fontes intermitentes e emite menos gases de efeito estufa do que carvão, diesel e petróleo. Mas ainda trata-se de um combustível fóssil, emissor de carbono e metano — e num país em que há abundância de energia limpa.
A Marfrig já emitiu um ‘transition bond’ de US$ 500 milhões no mercado externo no ano passado, voltado para a compra de gado de fornecedores que não estão envolvidos com desmatamento, com parecer da VigeoEiris.
A operação levantou algumas críticas sobre a efetividade da rastreabilidade: por mais que consiga rastrear os fornecedores diretos, ainda há pouca visibilidade sobre a cadeia indireta, que fornece bezerros para os criadores que fazem a engorda do boi.
Destinação dos recursos
No caso da Eneva, os recursos captados vão ser usados para dois projetos.
O primeiro é o chamado ‘fechamento de ciclo’ da usina de Parnaíba 3, projeto batizado de Parnaíba 6. Na prática, isso significa produzir energia a partir do vapor gerado pela combustão do gás, adicionando 90 MW à capacidade de produção de 178 MW original da primeira usina. Trata-se, portanto, de um projeto de eficiência energética, de geração de 50% mais energia com menos emissão.
O segundo projeto é mais controverso.
Trata-se da construção da usina de Azulão-Jaguatirica II, em Roraima, que fica no chamado Sistema Isolado, fora do Sistema Interligado Nacional que conecta todo o país.
O projeto deve abastecer cerca de 40% da demanda do Estado, que hoje é atendido por térmicas a óleo diesel, caras e muito poluentes. O combustível será o gás natural que a Eneva extrai no campo de Azulão, no Amazonas, que será liquefeito e transportado por pouco mais de mil quilômetros por caminhões até o Estado vizinho.
Há adicionalidade ambiental, um dos pré-requisitos para a emissão de um título verde de acordo com os protocolos internacionais estabelecidos para a certificação.
E talvez o abastecimento a gás seja o mais competitivo hoje. Afinal, foi ele que garantiu o maior volume ao menor preço no leilão para abastecer a região, realizado em maio do ano passado. (No mesmo certame, foram contratados também projetos de biomassa de cavaco de madeira combinada com radiação solar, energia solar solar e biocombustível)
Mas há um outro fator relevante considerado nas emissões verdes, o chamado ‘lock-in effect’.
Uma usina de gás natural tem uma vida útil de 40 anos e, portanto, a a decisão tomada agora terá repercussões por quatro décadas. E nada garante, por exemplo, que daqui a alguns anos não haverá uma bateria comercialmente viável para armazenar energia mais limpa, como a solar ou a eólica e garantir a resiliência da rede elétrica da região. Viabilizar esse projeto agora significa “casar” com uma fonte poluente por um período longo demais.
Exemplos dessa transição não faltam: a energia eólica saiu de praticamente inexistente na matriz energética há dez anos para ser a fonte mais competitiva hoje, caminho que vem sendo trilhado pela solar.
Nome aos bois
Em meio à explosão ESG e do green finance, a discussão sobre a taxonomia dos produtos — um trabalho ainda em construção — é sempre acalorada.
Enquanto alguns participantes do mercado acham que os ‘transition bonds’ podem trazer banalização ao tema, outros vão na mão contrária e afirmam que o escopo dos títulos verdes por si só é robusto o suficiente para abarcar projetos de transição.
Mas para evitar o greenwashing talvez seja necessário dar o nome certo para cada coisa, especialmente no Brasil, onde o mercado de títulos verdes começa a ganhar mais tração.
Os selos por aqui ainda não necessariamente se refletem em acesso a novos bolsos ou taxas de juro mais baixas e são praticamente uma ferramenta pedagógica e de posicionamento para as empresas.
A seguradora Axa, uma das maiores do mundo, já tem seu ‘transition bonds guideline’ e é uma das maiores entusiastas do rótulo. A International Capital Markets Association (ICMA) está finalizando o framework a esse respeito.
“Começamos a pensar: boa parte do nosso portfólio é feito de empresas industriais e setores extrativos”, disse o head de research da Axa, Yo Takatsuki, ao Financial Times sobre o tema. “Se não endereçarmos as emissões de carbono advindas dessa parcela, não temos nenhuma chance”.
A Sustainalytics, outra provedora de pareceres de segunda opinião, lançou um serviço específico para transition bonds, focado, segundo a própria empresa, no setor de aço e gás natural, dada a forte demanda.
Procurada, a SITAWI informou que não comenta sobre casos específicos. Mas disse que, em cada mandato, avalia se os títulos são verdes, sociais, sustentáveis ou de transição.
O Itaú BBA é o banco coordenador-líder da oferta da Eneva, ao lado de BB Investimentos, Bradesco BBI, BTG Pactual e XP Investimentos.