Taxonomia sustentável do Brasil vai a consulta pública, com debate sobre desmatamento legal

Comentários serão coletados até janeiro de 2025 e versão final será publicada em julho

Taxonomia sustentável do Brasil vai a consulta pública, com debate sobre desmatamento legal
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O Brasil quer atrair recursos para a transformação ecológica de sua economia e, para fazê-lo, um dos desafios é definir o que são ou não atividades e negócios sustentáveis, ou seja, aqueles aptos a receber esse capital. 

O governo acaba de apresentar sua proposta de taxonomia sustentável, que servirá como régua para o sistema financeiro e corporativo. O documento foi divulgado no último sábado, 16, na COP29 em Baku, mas o lançamento oficial da consulta pública no Brasil será feito no dia 28. 

A ferramenta foi desenvolvida de abril a outubro deste ano, e teve propostas ligadas a projetos do agronegócio como um dos tópicos sensíveis em sua construção – o que não surpreende em um país onde o agro responde por 24% do Produto Interno Bruto (PIB) e a mudança do uso da terra, por 46% das emissões de gases do efeito estufa.

A taxonomia foi fatiada  em duas para a consulta pública. A primeira, que receberá contribuições até 31 de janeiro de 2025, traz a metodologia de seleção dos setores priorizados, os critérios usados na construção da taxonomia, informações sobre o sistema de Reporte, Monitoramento e Verificação, salvaguardas mínimas gerais, com requisitos ambientais e sociais para cada organização, e especificações para oito setores. Ao todo, são doze documentos que somam mais de 360 páginas. 

“Vocês estão vendo entre 70% e 80% do que será a taxonomia brasileira”, disse ao Reset Cristina Reis, subsecretária de desenvolvimento econômico sustentável do Ministério da Fazenda, à frente da construção. 

A segunda parte, com os demais 20% a 30%, ficará em consulta entre 1 de fevereiro e 31 de março de 2025. Nela, serão apresentados critérios técnicos selecionados para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas, salvaguardas específicas e informações detalhadas para cada setor. 

A versão consolidada será publicada em julho do mesmo ano, promete o governo.

Inovação verde e amarela

Outros países, como México, Colômbia e os agrupados na União Europeia, já possuem a própria taxonomia – a maioria concentrada em critérios ambientais. A brasileira nasce como “sustentável” em vez de “verde” por incluir aspectos sociais na conta. 

A ideia é que a ferramenta seja flexível e possa ser ampliada no decorrer dos anos, com sete objetivos climáticos e ambientais e quatro econômico-sociais em vista. 

Neste primeiro momento, são cinco os que estão em foco:

  • Mitigação da mudança do clima;
  • Adaptação à mudança do clima;
  • Uso sustentável do solo e conservação, manejo e uso sustentável das florestas;
  • Redução das desigualdades socioeconômicas, considerando aspectos raciais e de gênero; e
  • Redução das desigualdades regionais e territoriais do país.

A partir desses objetivos, foram definidos os setores prioritários na construção da taxonomia com base em indicadores econômicos, climáticos e ambientais e a importância no atual contexto político – por exemplo, peso no PIB, volume de emissões de carbono e relevância em políticas nacionais. 

Foram escolhidos os seguintes setores: Agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura; Indústrias extrativas; Indústria de transformação; Eletricidade e gás; Água, esgoto, atividades de gestão de resíduos e descontaminação; Construção; Transporte, armazenagem e correio; e Serviços sociais para a qualidade de vida.

A expectativa, segundo Reis, é que a COP30 permita a discussão da taxonomia e que esta sirva como incentivo para que outras economias também olhem aspectos sociais e setores que nem sempre estão cobertos. “Mineração, por exemplo, nós incluímos e outras taxonomias, não. Também somos os primeiros a abranger o turismo sustentável”, diz ela.

Régua de elegibilidade

Para ser considerada sustentável, uma atividade precisa cumprir três critérios gerais: contribuir substancialmente para um ou mais dos objetivos definidos, não prejudicar significativamente nenhum dos demais e cumprir todas as salvaguardas mínimas. Os dois primeiros se referem a cada projeto, enquanto o último é sobre a instituição responsável.

Um dos primeiros passos foi determinar os critérios de mitigação para cada uma das atividades, diz Reis. “Para se adequar à taxonomia, um projeto não pode emitir mais que ‘X’ toneladas de gás carbônico em um período de tempo, por exemplo. Esse valor limite de ‘X’ virá para consulta pública no segundo momento, e ele é muito importante”.

Cada um dos oito cadernos setoriais conta com uma lista de categorias elegíveis, descrição de atividades relacionadas, exemplos de como contribuem para determinado objetivo e critérios de exclusão.

No caso de transporte rodoviário de cargas, por exemplo, uma empresa pode fazer uma emissão de dívida sustentável para renovar sua frota de caminhões, desde que use no mínimo determinado volume de combustíveis sustentáveis. Já em saneamento, projetos de expansão de distribuição de água tratada ou de captação de águas superficiais também podem ser qualificados como sustentáveis. 

No mínimo, sem desmatamento

O caderno sobre agronegócio é, de longe, o mais robusto até agora. São 65 páginas que vão da pecuária à aquicultura.

A taxonomia define que o financiamento para imóveis onde tenha ocorrido desmatamento ilegal depois de 22 julho de 2008 não poderá ser considerado sustentável. A data tem a mesma base do marco temporal do Código Florestal Brasileiro, que regularizou áreas desmatadas ou ocupadas ilegalmente antes dessa data.

Mas há exceções: se o proprietário já tiver pago a multa devida e estiver em processo de recuperação de área degradada ou alterada, seu imóvel poderá ser elegível à taxonomia de novo, explica a Fazenda.

Já no desmatamento legal, os imóveis precisam obter a Autorização para Supressão de Vegetação (ASV), que exige a regularização do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e passa por análise do Ibama e órgãos ambientais estaduais. 

Nesse caso, o recurso com carimbo sustentável não poderá contribuir direta ou indiretamente para o processo de desmatamento, como a compra de equipamentos usados na supressão de vegetação nativa. Aqui, a data de corte ainda não foi definida e está aberta à discussão na consulta pública. 

Outro ponto controverso na construção da taxonomia foi o papel do gás natural, combustível que divide opiniões sobre seu lugar na transição energética. De um lado, há quem argumente que o gás natural – que apesar do nome, é de origem fóssil – emite menos CO2 que diesel e carvão, e portanto deve ter sua produção ampliada. Do outro, estão os que defendem que não faz sentido investir em algo transitório e que o fluxo de recursos deve ser direcionado para soluções renováveis.

Na taxonomia, a solução foi encontrar algum ponto no meio do caminho. O gás natural conquistou seu espaço na taxonomia e empreendimentos de geração elétrica a partir desse combustível fóssil poderão se enquadrar como sustentáveis, desde que respeitem uma porcentagem de mistura com biogás por determinado período e demonstrem que as emissões de gases de efeito estufa ao longo do ciclo de vida ficarão abaixo de certo volume, ainda a ser definido. Projetos de transporte e distribuição de gás natural — combinado ou não com biogás — também são elegíveis.

ESG?

As salvaguardas da taxonomia foram desenhadas com base na legislação e normas brasileiras vigentes, e convenções e diretrizes internacionais, com a função de assegurar padrões mínimos de governança organizacional. 

É nesta parte que se trata do respeito aos direitos trabalhistas, às comunidades tradicionais e à igualdade de raça e gênero, e da adoção de práticas pela proteção da biodiversidade, gestão ética das organizações e exigência da conformidade tributária. 

O critério é binário: cada organização ou entidade cumpre ou não os requisitos. 

“No caso do desmatamento, por exemplo, olhamos para a unidade produtiva. Já no enfrentamento de desigualdades, olhamos para a empresa”, observa Reis.

As organizações não podem estar na ‘lista suja’ de empregadores que praticam condições análogas à escravidão nem na lista do desmatamento ilegal do Estado do Pará, por exemplo. Também não podem integrar a lista por autuações ambientais e embargos por desmatamento do Ibama e do ICMBio. 

Na prática

A taxonomia serve para que, quando um investidor dentro ou fora do país, público ou privado, considere investir no Brasil, saiba quais são os critérios considerados para classificar um produto ou uma operação como sustentável. 

A régua poderá ser aplicada pelo mercado de capitais e bolsa de valores, na rotulagem de fundos ou composição de índices. Organismos multilaterais, como os bancos de desenvolvimento BNDES e BID, também poderão usar os critérios para estabelecer linhas ou programas de incentivo a projetos sustentáveis. 

Nas entidades nacionais, a ferramenta poderá servir para fortalecer práticas sustentáveis no Plano Safra ou delimitar o destino de recursos captados nas emissões de dívida soberana ESG pelo Tesouro.

Na outra ponta,  ela vai permitir que as empresas compreendam e reportem quais práticas sustentáveis já adotam – e até levantem recursos para financiá-las, por meio de linhas de créditos específicas ou emissão de títulos de dívida, por exemplo. “No estado inicial [de um projeto], elas vão poder escolher o que produzir e como. A taxonomia pode orientar na eficiência energética ou no uso do solo”, afirma a subsecretária. 

A ferramenta foi construída a muitas mãos. Além de representantes de mais de 20 ministérios, colaboraram os reguladores do Sistema Financeiro Nacional – Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e as superintendências nacionais de previdência complementar (Previc) e de seguro privado (Susep) – e diversos apoiadores técnicos, como Climate Bonds Initiative (CBI), Programa dos Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ), Embrapa, Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Pacto pela Igualdade Racial.

Correção às 11h12: os projetos de transporte e distribuição de gás natural são elegíveis na taxonomia sustentável brasileira, não os de processamento de gás natural, como constava. A informação foi corrigida.