Um projeto de lei que pode resultar em mudanças profundas no processo de licenciamento ambiental está em discussão no Senado. A bancada ruralista e o lobby da indústria querem que o PL 2159/2021 seja encaminhado às comissões de Meio Ambiente e Agricultura ainda este mês e vá à votação em plenário o mais rápido possível.
Há muito se discute a necessidade de uma legislação abrangente para o tema e que, ao mesmo tempo, desburocratize o processo. Hoje, empreendimentos que dependem desse tipo de liberação têm de cumprir exigências federais de caráter infralegal e se adequar a regras estaduais que variam bastante de uma jurisdição para outra.
Mas o texto em análise, na prática, não resolve essas questões, segundo os críticos à proposta. Mais: ele rasga as regras de licenciamento atuais e coloca, no lugar, um modelo extremamente flexível, resultando em opiniões completamente divergentes.
Entidades ambientalistas temem a aprovação da “mãe de todas as boiadas”, nas palavras de Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas da coalizão de ONGs Observatório do Clima.
Já na avaliação da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que tem atuação direta junto a parlamentares, a redação do PL deve ser comemorada. Ao Reset, o diretor de relações institucionais da CNI, Roberto Muniz, afirmou que o projeto é fruto de mais de 20 anos de debate no Legislativo.
“[O PL] equilibra os diversos interesses e vê o desenvolvimento econômico e social como fator imprescindível para garantir mais proteção ao meio ambiente”, diz Muniz.
Com uma atuação enfraquecida no Congresso e sem capacidade de formar consenso e liderança sobre os temas ambientais, a ala verde do governo caminha para ser derrotada, mais uma vez, na arena do Legislativo, repetindo os episódios vistos no ano passado, com a votação da lei dos agrotóxicos e o marco temporal das terras indígenas.
As principais mudanças
Dentre as diversas alterações incluídas na proposta, podem-se destacar cinco delas como de grande impacto na legislação atual e nos rumos da proteção ambiental.
Pelo texto em análise, governos estaduais e municipais assumem a atribuição de definir qual tipo de empreendimento precisará ou não de licença ambiental, além de decidir que tipo de rito e de exigência será aplicado em cada caso.
A delegação de responsabilidades que hoje são federais pode agradar parte do setor produtivo, mas é rechaçada pelos ambientalistas, que veem um espaço aberto para uma crescente fragilização das regras ambientais, dado que cada jurisdição tende a flexibilizar cada vez mais suas próprias regras a fim de atrair mais empreendimentos.
O texto também propõe a adoção da Licença por Adesão e Compromisso (LAC) para todo o país. Apesar de o recurso já existir em alguns Estados, essa licença autodeclaratória só é aplicada a determinados projetos de baixo impacto e com conhecimento prévio da área ambiental.
Pelo projeto de lei, no entanto, a LAC seria convertida em um tipo de licenciamento automático, realizada com uma simples declaração pela internet, submetida apenas a uma análise técnica por amostragem.
A proposta já aprovada na Câmara estabelece, ainda, que fica dispensada a necessidade de avaliação de impacto ambiental quando um projeto estiver em terras indígenas ou quilombolas ainda não-homologadas, ou seja, que aguardam a conclusão de estudos para serem tituladas.
Uma quarta mudança estabelece limites para o tipo de compensação socioambiental que pode ser exigida de empreendedores. A instalação de escolas e postos de saúde, por exemplo, medida que muitas vezes é incluída em ações de mitigação e compensação, devido ao impacto social que um projeto pode ter, fica de fora do escopo. As compensações seriam limitadas a temas especificamente ambientais.
Pelo texto, o Instituto Chico Mendes (ICMBio), órgão que hoje tem poder de veto a empreendimentos que impactem unidades de conservação federais, teria essa atribuição anulada. No lugar do poder de veto, o instituto se limitaria a uma participação “consultiva”.
Queda de braço
Entidades de defesa do meio ambiente classificam o momento como decisivo. Caso o projeto seja aprovado na forma atual, até mesmo as metas de controle do desmatamento e emissões de gases do efeito estufa podem ficar comprometidas.
Mauricio Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), afirma que o PL representa uma “catástrofe” para a regulação em vigor hoje. “A proposta que a Câmara aprovou em 2021 é a pior de todas sobre o tema desde 1988, pelo menos.”
O especialista chama a atenção para o fato de que parte do governo apoia a proposta, assim como fez nas votações dos agrotóxicos e do marco temporal. “Isso não pode acontecer na pauta do licenciamento, sob pena de inviabilizar por completo as promessas de campanha feitas por Lula em relação à proteção do meio ambiente, do clima e da saúde da população.”
A realidade é que o Executivo segue dividido. Se, por um lado, a proposta da Nova Lei do Licenciamento é vista como um pesadelo pelo Ministério do Meio Ambiente, ela é comemorada pelo Ministério da Agricultura (Mapa).
Neri Geller, secretário de política agrícola do Mapa e braço direito do ministro Carlos Fávaro na pasta, refuta as críticas dos ambientalistas e diz que tem atuado para que o texto seja aprovado sem mudanças no Senado.
Geller tem especial interesse no assunto: foi ele o relator do PL aprovado na Câmara em 2021, quando ainda era deputado federal pelo Progressistas (MT) e ocupava a vice-presidência da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), maior bancada do Congresso.
Riscos de judicialização
Ao mesmo tempo em que reconhecem a necessidade de aprimoramento nas regras de licenciamento, ambientalistas e procuradores apontam os riscos de um cenário de insegurança jurídica, com efeito totalmente contrário ao que se pretende, levando à fuga de investidores.
Para a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), o projeto favorece a judicialização de processos de licenciamento. “Autorizar, de forma genérica e abstrata, a dispensa de licenciamento para uma série de atividades/empreendimentos com impacto ambiental, ainda que não significativo, subtrairia a precaução e o controle por parte do Poder Público”, afirma a associação em nota.
“A simplificação ou dispensa de licenciamento viola princípios constitucionais, legislação vigente e compromissos aos quais o Brasil aderiu no plano do direito internacional.”
Em entrevista ao Reset, Neri Geller sugere o contrário. Ele diz que a nova lei teria potencial de destravar R$ 150 bilhões para obras no país. “Talvez essa seja, hoje, a mais importante mudança para a economia do Brasil. Então, seria bom que o relatório aprovado na Câmara também passasse pelo Senado sem alterações, para que possa ir direto para sanção presidencial. Nós aqui do ministério, eu e o ministro, daremos todo apoio para que o texto avance e seja votado como está.”
Mas, do lado financeiro, há uma crescente preocupação com os atributos socioambientais de empreendimentos. Se por um lado ganha-se em agilidade, por outro o relaxamento das regras pode resultar em problemas, diz Antonio Augusto Reis, sócio da área de direito ambiental e mudanças climáticas do escritório Mattos Filho.
“Em alguns casos a completa ausência de licenciamento torna mais complexa, para não dizer impossível, a tarefa de verificar a regularidade das atividades do tomador de crédito”, afirma Reis.
Pressa
Zequinha Marinho (Podemos-PA), que hoje ocupa a vice-liderança da FPA, afirma que a intenção é pautar a proposta ainda este mês.
O projeto de lei está nas mãos de dois senadores. Do lado ruralista, é relatado pela senadora Tereza Cristina (PP-MS), na Comissão de Agricultura. Já na Comissão de Meio Ambiente, está sob relatoria do senador Confúcio Moura (MDB-RO).
No fim do ano passado, Moura chegou a agendar a votação do projeto na comissão, mas retirou seu texto de última hora. Ambientalistas que tiveram acesso ao conteúdo e que participaram de reuniões com o senador afirmam que sua proposta faz uma série de alterações no projeto enviado pela Câmara, a fim de tentar acomodar demandas e chegar no cenário de melhor consenso que for possível. A assessoria de Confúcio informou que ele ainda avalia o tema.
Do lado de Tereza Cristina, todas as indicações são de que a senadora pretende levar à votação o texto que recebeu da Câmara, sem nenhuma alteração, o que tem apoio do próprio Ministério da Agricultura. Procurada pela reportagem, a senadora não retornou o pedido de entrevista.
Nos bastidores, alimenta-se a expectativa de que Confúcio Moura e Tereza Cristina convirjam para um texto único, embora cada um tenha visões distintas sobre o que deve ser aprovado e levado ao plenário do Senado.
“Sabemos que o Poder Executivo tem negociado com o relator, senador Confúcio Moura, uma versão tecnicamente mais consistente para a futura lei”, diz Suely Araújo, do Observatório do Clima. “A esperança é que o governo siga nessa linha e não admita a aprovação de uma lei irresponsável sobre o licenciamento ambiental.”