REGULAÇÃO

Governo adia regulamentação da cannabis, mas por um bom motivo

Regras para o uso medicinal eram previstas para esta semana, mas ficaram para setembro para contemplar um plano de ação e envolver mais atores na construção do marco legal 

Governo adia regulamentação da cannabis, mas por um bom motivo

Um balde de água fria celebrado por empresas, associações e especialistas do mercado de cannabis no Brasil. Assim foi vista a divulgação, na última segunda-feira (19), de um plano de ação para regulamentar a produção de cannabis exclusivamente para fins medicinais e científicos no país. Segundo o documento, a publicação final das regras será no dia 30 de setembro. 

Um projeto de lei que prevê regras inclusive sobre seu cultivo, hoje ainda proibido, aguarda aprovação pelo Congresso há quase uma década. “Ainda que atrasado, o novo plano é um movimento importante do governo, o mais embasado até aqui”, diz Bruno Pegoraro, presidente do Instituto Ficus, organização sem fins lucrativos que apoia o desenvolvimento sustentável de políticas públicas sobre cannabis e cânhamo industrial. 

A decepção de muitos deu-se pela expectativa de que a regulamentação seria publicada agora. Em novembro passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) validou o cultivo medicinal da cannabis por empresas e deu prazo de seis meses para que o governo federal e a Anvisa definissem uma política nacional – período que venceu no último dia 19. 

A decisão do STJ restringe-se ao plantio, cultivo e comercialização do cânhamo industrial, variação da cannabis com teor de tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%, apenas por pessoas jurídicas e para fins exclusivamente medicinais e farmacêuticos. O THC é o único canabinóide com efeito psicotrópico entre as mais de 400 substâncias presentes na planta.

A ministra do STJ Regina Helena Costa, relatora do recurso especial analisado em novembro, disse em sua defesa que por seu baixo teor de THC, o cânhamo não pode estar sujeito às mesmas proibições da lei das drogas, de 2006, possibilitando seu plantio em solo brasileiro. 

O novo plano define os próximos passos até a regulamentação e foi apresentado pela Advocacia-Geral da União (AGU) com participação da Anvisa e dos ministérios da Saúde, da Justiça e Segurança Pública, da Agricultura e Pecuária, do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. A aprovação final, marcada para 30 de setembro, fica sob responsabilidade do Ministério da Saúde. 

Algumas ações para a construção das normas já vêm acontecendo, entre elas a criação de grupos de trabalho interdisciplinares e uma notificação do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), no mês passado, para o Comitê de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da Organização Mundial do Comércio (OMC) tratando de requisitos fitossanitários para a importação de sementes no Brasil.

Regulamentação mais abrangente

Segundo especialistas do mercado de cannabis, o plano de ação do governo, apesar de adiar por mais alguns meses as novas normas, reforça a possibilidade de construí-las de maneira mais ampla e detalhada. “Vejo como um grande avanço ampliar a regulamentação para além da indústria farmacêutica, por exemplo”, diz Maria Riscala, CEO da Kaya Mind, empresa de inteligência de mercado para o setor de cannabis.

O escopo para elaboração, validação, publicação e institucionalização das normas deve ouvir e abranger cinco tipos distintos de produtores que já atuam no país: associações de pacientes, indústria e rede farmacêutica, laboratórios públicos, saberes tradicionais e setor agrícola.

Segundo Riscala, cada agente olha para seu próprio umbigo, então é natural que haja críticas ao plano e discordâncias. “Mas, a meu ver, ele contempla a parte mais importante de toda a cadeia, o paciente”, diz. “É preciso atender quem mais precisa hoje dos medicamentos, não quem está ganhando dinheiro com ele.”

Para Pegoraro, do Instituto Ficus, era esperado que o plano se restringisse ao uso medicinal e farmacêutico do cânhamo. “Mas é preciso discutir também outras aplicações da planta. E ampliar essa regulamentação do uso medicinal da cannabis para concentrações acima de 0,3% de THC”, diz. 

Com mais de 25 mil aplicações, o cânhamo é 100% aproveitável. Da semente é extraído o óleo, utilizado em alimentos, cosméticos e biocombustíveis. Da flor, os extratos. E as fibras do caule podem ser aproveitadas nas indústrias têxtil, alimentícia, automotiva e de construção. “Uma das falhas do plano é não considerar todas essas aplicações”, concorda Riscala. 

Alto custo da importação

A regulamentação do mercado de cannabis é urgente para toda a sociedade, de produtores a pacientes. Atualmente, quase toda a cadeia é regulamentada por RDCs (Resolução da Diretoria Colegiada) da Anvisa: registro, fabricação, importação, comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização. Falta, no entanto, tratar do plantio e cultivo. 

A importação da matéria-prima encarece os medicamentos e a falta de normas confere uma fragilidade jurídica ao setor. A judicialização ainda é o principal meio de obter autorização para produção e acesso a produtos à base de cannabis. A indústria precisa importar matéria-prima e associações de pacientes só conseguem plantar cannabis por meio de habeas corpus. Ainda assim, correm riscos por conta de eventuais brechas da falta de normas oficiais. 

Em março, a Associação Cannabica Medicinal (Ascamed), do Rio Grande do Sul, foi alvo de uma ação da Polícia Federal. Foram incinerados 422 pés e 480 mudas de cannabis, segundo a operação por estar em escala superior à autorizada e em local distinto do permitido. 

A judicialização traz um custo alto também aos cofres públicos. Dados do Ministério da Saúde mostram que, entre 2022 e 2024, foram investidos, apenas pelo governo federal, cerca de R$ 23 milhões com ações movidas por pacientes e familiares. Segundo o STJ, nos últimos anos houve um crescimento de 4.100% de pedidos judiciais sobre o tema.

Vários Estados já têm legislações próprias prevendo a distribuição de produtos à base de cannabis pelo sistema público, via SUS. Os únicos ainda sem leis específicas aprovadas são Bahia, Ceará, Minas Gerais e Pará. Mas, mesmo evitando as judicializações, o alto custo final do produto e a precariedade jurídica ainda são entraves para a ampliação do fornecimento. 

O preconceito e falta de argumentos científicos em algumas discussões também são um grande obstáculo. No Estado de São Paulo, por exemplo, o SUS só fornece medicamentos à base de canabidiol (CBD) em casos de Síndrome de Dravet, Síndrome de Lennox-Gastaut e esclerose tuberosa, patologias consideradas raras. 

No mês passado, a Secretaria Municipal de Saúde da capital também oficializou o uso da cannabis medicinal na rede pública, mas para pacientes com diversas outras condições clínicas, como Transtorno do Espectro Autista (TEA), fibromialgia, dor crônica, ansiedade, epilepsia refratária, transtornos psiquiátricos, endometriose e insônia. 

“Ter a eficácia científica reconhecida e o uso permitido ampliado para mais patologias sem dúvida vai ampliar a quantidade de pacientes usando cannabis”, diz Riscala. “E isso é fundamental na construção da regulamentação.”