No acender das luzes das árvores de Natal, na última sexta-feira a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou finalmente o novo marco regulatório para os fundos de investimento, que era esperado com grande ansiedade pelo mercado e que passará a vigorar em abril de 2023.
Dentro do extenso pacote, o xerife do mercado de capitais finalmente começou a contemplar o universo dos investimentos sustentáveis e climáticos com dois temas que careciam de regulação.
De forma inesperada, o regulador resolveu definir claramente quais fundos podem carregar rótulos como ESG, sustentável e afins em seu nome.
Numa outra frente, a CVM resolveu classificar créditos de carbono – e CBios – como ativos financeiros, o que significa que poderão ser criados fundos com esses ativos em carteira de agora em diante. Definir a natureza jurídica dos créditos de carbono era uma questão pendente no mercado de capitais brasileiro, que agora fica superada (mas a equiparação só vale para fins de aplicação de fundos).
No entanto, a regra veio com uma pegadinha que não ordena o jogo como o mercado esperava.
Para quem esperava um incentivo para os créditos de origem florestal e outros negociados no mercado voluntário, ficou a decepção. O regulador definiu apenas os créditos registrados em mercados regulados de carbono como ativos financeiros, algo que o Brasil ainda não tem porque não criou o seu mercado regulado.
Na prática, a regra passará a valer, portanto, para os CBios. A ironia é que, inicialmente, as discussões previam apenas os créditos de carbono, mas houve pressão da Unica, a associação da indústria da cana, para que os CBios também fossem contemplados.
Os CBios são uma espécie de crédito de carbono setorial previsto pelo programa RenovaBio, do governo federal, em que os as emissoras são as produtoras de biocombustíveis e as compradoras são principalmente as distribuidoras de combustíveis.
“Os fundos continuam sem conseguir empacotar créditos de carbono do mercado voluntário, porque a nova regulação não permite”, diz a advogada e consultora em sustentabilidade Ana Luci Grizzi. “Incluir os créditos do mercado voluntário é outro passo relevante que precisa ser dado.”
Há algumas hipóteses para que os créditos voluntários tenham ficado de fora. Pode ter ocorrido um equívoco na redação ou ter sido algo intencional; neste último caso, há duas hipóteses principais para a motivação.
A primeira é que pode haver receio do governo em incentivar demais o mercado voluntário de carbono e, com isso, tornar mais difícil o cumprimento da meta de descarbonização fixada pelo Brasil dentro do Acordo de Paris.
No mercado voluntário, os créditos são vendidos a empresas que espontaneamente querem compensar suas emissões e ele ficou de fora da regulação do artigo 6 do Acordo de Paris que regula as trocas internacionais de créditos para ajudar no cumprimento das metas nacionais, as chamadas NDC.
Mas, em muitos casos, o projeto voluntário está dentro de um segmento contemplado pelo compromisso de redução do país, o que cria uma espécie de concorrência entre a demanda por compensações das empresas e do país. No caso do Brasil, a redução do desmatamento é chave para o cumprimento da meta nacional e a grande corrida no mercado voluntário tem acontecido justamente em projetos de desmatamento evitado e de reflorestamento. (Para entender mais sobre os mercados de carbono, baixe o guia do Reset)
A segunda possibilidade seria uma preocupação com a qualidade dos créditos, a chamada integridade. “A grande questão é qual critérios a CVM adotaria para assegurar a integridade dos créditos que entrariam nos fundos para evitar a inclusão de créditos frágeis”, diz Gustavo Pimentel, da Nint, consultoria ESG.
Hoje existem sistemas privados de certificação dos créditos – o mais conhecido é a Verra – e o regulador teria que aceitar um ou alguns deles na norma.
“Quais certificadoras deveriam ser aceitas e sob quais critérios? A CVM parece ter preferido uma abordagem prudente”, diz ele.
Rotulagem ESG
Uma das grandes surpresas do novo marco dos fundos, e que finalmente coloca a CVM em linha com outros reguladores internacionais, é que seu artigo 49 define que os sufixos “ESG”, “ASG”, “ambiental”, “verde”, “social”, “sustentável” e semelhantes só podem ser usados nos nomes de fundos que ‘busquem originar benefícios socioambientais”.
Em outras palavras, a norma põe o foco na intenção do investimento em gerar um impacto ambiental ou social positivo.
A norma veda explicitamente que fundos que integram fatores ambientais, sociais e de governança à gestão de risco da sua carteira coloquem tais rótulos no nome. Para esses, a integração deve constar no regulamento do fundo.
Pode parecer um detalhe, mas no universo dos investimentos sustentáveis, trata-se de uma diferença fundamental. Uma coisa é adquirir ativos de empresas cuja atividade principal gera um benefício claro, quer seja social, quer seja ambiental.
Outra coisa é adquirir um ativo de uma empresa que exerce uma atividade qualquer, mas que faz isso respeitando determinados critérios ambientais e sociais.
Sobre os fundos rotulados, a norma determina ainda que o fundo explicite:
1) quais os benefícios ambientais, sociais e de governança esperados e como a política de investimentos busca originá-los;
2) quais metodologias ou princípios são adotados para qualificar o fundo e
3) qual a entidade responsável por certificar ou emitir parecer de segunda opinião sobre a qualificação, bem como informações sobre a sua independência.
Sobre o último item, a norma não obriga a contratação de um terceiro para dar o parecer, mas claramente incentiva esse caminho.
“A CVM deu um passo muito aguardado, embora não houvesse indicação de que isso viria agora. A norma saiu em linha com o que a Anbima propunha na sua autorregulação e também com a recomendação da Iosco”, diz Grizzi.
A Iosco é uma espécie de CVM das CVMs sem força regulatória, e pouco mais de um ano atrás divulgou uma série de recomendações para que os reguladores de cada país apertassem as regras dos fundos sustentáveis para combater o greenwashing.
“A regra ficou muito boa, porque diferencia de maneira muito clara o que é integração ESG e o que gera benefícios socioambientais. A definição ficou parecida com a da autorregulação da Anbima, mas até um pouco melhor”, diz Gustavo Pimentel.
A Anbima criou uma autorregulação que também diferenciava fundos que fazem a integração de fatores ESG na sua análise de risco daqueles que têm um ‘objetivo de investimento sustentável’ e apenas esses últimos poderiam usar a rotulagem ESG, além de ganhar o sufixo IS (investimento sustentável) na classificação da própria Anbima.
Mas a aplicação da regra acabou recebendo críticas do mercado, com especialistas considerando que a barra ficou muito baixa e que a categoria IS estava abrigando fundos que claramente não tinham os atributos necessários.
Agora tudo passa a ser regulado com a edição da nova norma da CVM.
Mas, Gustavo Pimentel, da Nint, diz que existe uma brecha: no capítulo da resolução sobre ‘definições’ dos termos, a CVM não trouxe o que são exatamente os benefícios socioambientais. “Isso pode gerar alguma discussão.”