Você já sabe que um dos grandes destaques das negociações que acontecem na COP26 é o artigo 6 do Acordo de Paris, que trata dos mercados de carbono. Esse artigo ficou famoso por ser um dos únicos pontos que ainda não foram “regrados” desde que o tratado entrou em vigor, em novembro de 2016.
O motivo para isso ainda não ter acontecido é bastante razoável: regulamentar o artigo 6 significa criar as regras e estruturas de um mercado de carbono de proporções verdadeiramente globais, algo que nunca antes existiu.
A ideia central por trás de um mercado global e regulado de carbono é tangibilizar financeiramente o impacto global das responsabilidades climáticas de cada país. Ele serve ao mesmo tempo para “penalizar” países que não cumpram suas metas de descarbonização e para incentivar quem fizer a lição de casa.
Isso significa que um país que vá além do prometido poderá ser remunerado por aqueles que ficaram devendo.
Na prática, sempre foi possível para o setor privado comprar e vender créditos de carbono de forma voluntária com transferências internacionais, o que vinha acontecendo há algumas décadas. Mas os volumes eram pouco expressivos quando comparados à demanda obrigatória, vinda das exigências do Protocolo de Kyoto ou dos sistemas de comércio de emissões domésticos.
Tudo mudou com o Acordo de Paris. Os países que a ele se associaram assumiram a obrigação de apresentar, manter e revisar periodicamente metas de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) — chamada oficialmente de contribuição nacionalmente determinada (NDC).
Com a obrigatoriedade de apresentar uma NDC, cada um desses países — muitos deles quase sem perceber — se comprometeu na prática com um orçamento de carbono, ou seja, uma meta que estabelece limites em suas emissões de GEE ao longo de cada período de 5 anos.
Veja que se trata de uma meta/orçamento totalmente autodeterminado, ou seja, os termos são definidos de acordo com o que o próprio país julga justo, adequado e viável.
Agora, portanto, todos os países devem ter uma meta climática, uma condição para participarem do tratado. Mas no Protocolo de Kyoto não funcionava assim: apenas os países considerados desenvolvidos precisavam ter metas.
Países em desenvolvimento, como o Brasil, não tinham metas climáticas e ainda podiam gerar créditos de carbono para fornecê-los aos países desenvolvidos, que os usariam para cumprir suas metas, no âmbito do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).
Embora isso tenha ajudado os países em desenvolvimento a auferir receitas e implantar tecnologias e atividades de baixo carbono, criou-se também um problema: eles não se prepararam para serem também gestores de seus próprios orçamentos de carbono.
Que cada país tenha sua própria meta individual e, portanto, um orçamento de carbono individual para cumprir é importante porque significa que agora estamos todos sob um sistema regulado internacional, em que todos os países estão obrigados a controlar seus orçamentos, com o objetivo de se manter dentro de um orçamento global[1].
Logo, sempre que houver qualquer transferência de resultados de mitigação entre os países – ou seja, qualquer transferência de emissões ou de reduções de emissões de GEE –, elas terão de ser contabilizadas dentro desse orçamento.
A princípio isso se aplicaria a todas as transferências, inclusive aquelas dos mercados voluntários, pois não existe um orçamento de carbono do ambiente regulado e outro do ambiente voluntário: com o Acordo de Paris, tudo que acontece em termos de emissões de GEE dentro de um país é entra na conta do orçamento de carbono daquele país, independentemente de este país ter ou não medidas de precificação de carbono.
Logo, nesse novo contexto, sempre que acontecerem transferências internacionais de resultados de mitigação serão necessários ajustes correspondentes nos orçamentos de carbono de ambos os países envolvidos.
A forma como isso será feito ainda está sendo discutida nas negociações do artigo 6, mas uma possibilidade é que cada país apresente anualmente um balanço de suas emissões, e “adicione” ou “subtraia” os “créditos de carbono” transferidos e usados por outro país da sua contabilidade de emissões.
Se isso não for feito, corre-se o risco de os resultados serem contabilizados em duplicidade ou ainda então serem resultados ilusórios, gerados a partir de um “orçamento” ou projeção inexistente, o chamado “hot air”.
Metas e orçamentos desiguais
É importante reconhecer que não é nada fácil para muitos desses países mais pobres propor uma meta climática que cubra todos os GEE e setores da economia, inclusive por falta de dados e capacidade de gestão sobre todas as fontes de emissões de GEE.
Muitos apresentaram metas que sequer são mensuradas em GEE, como, por exemplo, metas em megawatts de capacidade de energia renovável instalada. É claro que o Acordo de Paris reconhece que os países podem apresentar suas metas de forma autodeterminada, mas espera que os países desenvolvidos — e os países em desenvolvimento gradualmente progridam nesse sentido — apresentem metas que abranjam todos os setores econômicos e todos os gases de efeito estufa – as chamadas metas “economy-wide”.
Mas, se nem todos os países têm metas abrangentes de todos setores da economia e, portanto, não têm orçamentos de carbono comparáveis entre si, como poderão efetivamente trocar resultados de mitigação? Como é possível fazer a contabilidade disso, inclusive aplicar os ajustes correspondentes?
As dificuldades práticas de contabilizar essas transferências de resultados de mitigação e créditos de carbono entre os países membros do Acordo de Paris é um dos maiores problemas a superar nas negociações do artigo 6.
E, para os governos dos países em desenvolvimento, aplicar os ajustes correspondentes sempre que créditos de carbono gerados a partir de projetos de iniciativa do setor privado forem transferidos também é algo absolutamente novo e para o qual se carece de infraestrutura e capacidade técnica.
Mas o fato de ser difícil não significa que não seja necessário.
Mesmo o governo brasileiro, que tinha se mostrado contrário à aplicação de ajustes correspondentes em relação aos créditos de carbono transferidos dentro do mecanismo do artigo 6.4 do Acordo de Paris, hoje propõe um período de transição, após o qual esses ajustes passariam a ser necessários.
E já se fala da possibilidade de que esses ajustes correspondentes devam ser realizados pelo país hospedeiro mesmo quando os resultados de mitigação forem usados por atores não-membros do Acordo de Paris, no âmbito de outros mercados compradores (como o mercado de carbono do setor da aviação internacional, chamado Corsia), ou o mercado voluntário.
Ou seja, tudo se encaminha para num futuro próximo termos um único orçamento e mercado de carbono global, regido pelo Acordo de Paris.
Se houver avanço na regulamentação, no médio e longo prazos teremos mecanismos, ferramentas e um maior nível de regramento e controle sobre as transferências internacionais nos mercados de carbono de qualquer natureza. Parece assustador e de difícil implementação, mas é assim com todas as grandes ideias e revoluções necessárias.
Mas estamos no momento certo. Temos, em primeiro lugar, apetite do setor privado e financeiro. Também existe demanda por precificação de carbono e descarbonização da economia, além de maior fiscalização e escrutínio das metas climáticas governamentais e privadas.
Esse novo mercado global de carbono vai trazer mais segurança jurídica para todos os envolvidos e o conforto de que estamos desenhando o processo e as ferramentas certas para criar uma economia descarbonizada e resiliente à crise climática.
[1] Este orçamento global é representado pela quantidade de emissões de GEE a que os países estão limitados para evitar o aquecimento global perigoso previsto pela ciência, devendo para tanto se considerar como tolerável um aumento de temperatura que fique “bem abaixo de 2°C com esforços para se manter abaixo de 1.5°C em relação aos níveis pré-industriais”, nos termos do artigo 2.1 do Acordo de Paris.