OPINIÃO

Uma vitória olímpica muito além do esporte

'Abebe Bikila e os pés de vento' conta como um atleta conquistou duas medalhas inéditas e a autoestima de um continente

Uma vitória olímpica muito além do esporte

A vitória de um atleta em uma competição esportiva nunca é a vitória de um só. A vitória do etíope Abebe Bikila na maratona dos Jogos Olímpicos de 1960 em Roma, na Itália, também não foi. Nesse caso, porém, ganhou uma dimensão e um simbolismo que ultrapassam os frutos da preparação e do suporte clássicos de um atleta. Foi um feito até então inimaginável, resultado e, ao mesmo tempo, alavanca da sua história pessoal e da história de seu país.

Quem conta o que aconteceu é a Erika Astronauta em Abebe Bikila e os pés de vento, publicado em 2022, pela Edições Barbatana. Em 2025, a obra passou a integrar a seleção de 150 títulos sobre sustentabilidade escolhidos pela Feira do Livro Infantojuvenil de Bolonha  para compor sua famosa prateleira de livros incríveis para crianças e jovens. Todos as obras dessa lista abordam, direta ou indiretamente, um ou mais dos 17 objetivos para o desenvolvimento sustentável (ODS) da agenda de 2030 das Nações Unidas.

Em 32 páginas, desenhadas delicadamente com giz pastel oleoso e lápis de cor, a autora explica, com uma boa mescla de realidade e fantasia, como um garoto franzino, que aparentava menos idade do que tinha, tornou-se o primeiro ser humano a ganhar duas medalhas de ouro em maratonas e o primeiro africano negro campeão olímpico.

Parece muito, mas tem muito mais. Bikila venceu sua primeira maratona na terra do invasor, a Itália, que naquele tempo queria mostrar ao mundo que era um país livre, progressista e que havia deixado o fascismo para trás. Venceu sua primeira maratona correndo descalço. Quarenta e dois quilômetros com os pés no asfalto. 

Pronto, respira e agora vem ver como isso aconteceu.

Quando Bikila tinha apenas três anos, em 1935, o ditador italiano Benito Mussolini invadiu a Etiópia, embalado pelo furor da Europa colonialista em fatiar a África e distribuir os territórios entre seus países. A Itália já havia tentado conquistar a Etiópia antes, nos anos 1890, e havia fracassado. Com essa derrota engasgada e como um prenúncio da guerra que estava por vir, o primeiro-ministro fascista tomou a capital Addis Ababa e proclamou o rei Vítor Emmanuel III imperador etíope, enquanto o líder nacional Halie Selassie se exilava na Inglaterra.

Mas ele não se contentou com a vitória bélica e política. Quis ostentar. Levou para Itália, como símbolo da conquista, o obelisco de Axum: 24 metros de altura, 800 toneladas de granito, esculpido e erigido durante o Império de Axum, no século IV. Instalou seu troféu de guerra exatos dois quilômetros antes da linha de chegada da maratona que aconteceu em 1960.

A visão do ícone era o sinal, combinado com o treinador, para que Bikila corresse o mais rápido possível até o final. O último fôlego de que ele precisava para a desforra e para tirar o seu nome e de seu país do anonimato no esporte.

Mas foi mais do que isso. Bikila é sempre mais. Sua vitória enche de ânimo e de autoestima a população de um continente que começava a acordar para a independência e a sonhar com um futuro possível. Gana tornou-se independente em 1957, o Congo havia acabado de proclamar sua independência da Bélgica, dois meses antes dos Jogos Olímpicos de 1960 e mais estava por vir.

Com os pés no chão

Além de propor o tema da colonização, do fascismo, da guerra e do preconceito, o livro também fala sobre a pobreza, a vida no campo e as crianças que trabalham. O jovem Bikila cuidava das ovelhas da família com o pai e estava acostumado a caminhar e a correr vários quilômetros descalço, em busca de pasto. Pisava nas rochas cobertas de lava na região montanhosa onde morava.

Quando foi para a escola, aos 13 anos, começou a jogar ganna, versão etíope do hóquei de longa distância, em que as traves ficavam nas aldeias dos times adversários, muitas vezes a quilômetros de distância. Sem saber, já se preparava para o seu grande dia, sem patrocínio, sem nutricionista, sem equipamento. Era apenas a vida.

Muitos anos depois, quando estava há quase um ano desempregado e precisava cuidar da mãe, alistou-se no exército, a guarda imperial. Lá conheceu seu treinador, o sueco Onni Niskanen, de quem chamou a atenção e por quem foi escolhido para participar da maratona olímpica em Roma.

Em seguida, em 1964, venceu a maratona dos Jogos Olímpicos de Tóquio, quebrando seu próprio recorde, desta vez, com os pés calçados.

Sob o fio condutor do esporte, desenrola-se um grande novelo. Que tal aproveitar a admiração e a torcida das crianças por seus atletas favoritos para conversar sobre a vida e a história deles? Em qualquer modalidade ou origem, há uma vida em que se cruzam situação econômica, política, família, desejos e necessidades. Um fio puxa o outro.

Por trás da história e das vitórias de alguém estão também seus valores, seu jeito de ver o mundo, de fazer escolhas e, muitas vezes derrotas que vão além do esporte. Faz um mergulho e presta atenção nos comentários e nas perguntas das crianças. Eles também contam muito sobre elas e sobre o que escutam por aí. 

Em tempo, o obelisco foi devolvido à Etiópia em 2008.

Sobre a autora

Erika Astronauta é designer e estudou história da arte no Institut d’Études Supérieures des Arts, em Paris. Após experiências nas artes plásticas e no design, começou a ilustrar livros para crianças em diversas editoras. Abebe Bikila e os pés de vento é o seu primeiro livro autoral.

Além do livro

Até o dia 14 de junho, de quinta a sábado, das 11h às 18h, está em cartaz a exposição “Refloresta: 30 anos de Lalau e Laurabeatriz”, com parte da obra da dupla que retrata a fauna e a flora brasileira nas páginas dos livros há 30 anos.

Em mais de 60 publicações, a artista plástica e ilustradora Laura Beatriz de Oliveira Leite de Almeida e o publicitário e poeta Lázaro Simões Neto buscam representar a biodiversidade brasileira e aproximar as crianças (e por que não também suas famílias e a escola?) do meio ambiente. 

Serviço:
Galeria Página
Rua Purpurina, 307, São Paulo
Entrada gratuita