Bandeiras do Mercosul e da UE

O dia 2 de abril de 2025 foi o 11 de setembro do livre comércio. Não usei a expressão “Dia D”, porque lá o dia simbolizava a pauta civilizatória prevalecendo sobre a barbárie. No 11 de setembro, foi o contrário: assistimos, estupefatos, à barbárie prevalecendo e o mundo ficando mais inseguro.

Desta vez, no dia 2 de abril, encontramos um mundo igualmente chocado e mais inseguro economicamente. Os muros se erguem em vez de caírem, e as fronteiras precisam ser protegidas. Se as trocas não são mais bem-vindas, se não temos mais confiança para fazer negócios entre nações e precisamos sobreviver dentro dos nossos muros autossuficientes, estaríamos caminhando para um tipo de “feudalismo moderno”?

Não sei o que vai ser do livre comércio, não sei se os Estados Unidos definirão uma nova ordem mundial baseada no protecionismo ou se os outros países juntos irão resistir e manter os atuais princípios e valores de livre comércio.

Mas tenho certeza: para o Brasil, os EUA são um parceiro too big to fight. Talvez, usando a estratégia fight or flight, só nos reste voar e escolher novos parceiros.

Diante desse cenário, é natural buscarmos novas rotas. Se nosso principal parceiro comercial está desafiador e volátil — para dizer o mínimo —, temos o dever de buscar o aprofundamento das relações com os demais. No caso do Brasil, a China é o segundo parceiro, e a Europa ocupa um respeitável terceiro lugar. Aí entra o acordo Europa-Mercosul, finalmente firmado em dezembro passado.

Mas afinal o que é esse acordo? Será que estamos falando de um casamento fundado em interesses econômicos e compromissos comerciais? Seria só sobre fluxo econômico de bens, serviços e capital?

Não.

O acordo EU-Mercosul vai muito além de um acordo tarifário. Entrando nesse casamento, os países do Mercosul comprometem-se com muito mais do que crescimento do comércio. Nos comprometemos com valores baseados no que há de mais avançado na pauta civilizatória de governança, democracia e preservação do planeta.

Vamos entender um pouco melhor o acordo e seus três objetivos – em cada um deles tem uma chamada para ação para empresas e governo:

Quem são os noivos

Estamos falando de uma união de escala significativa, que reunirá um PIB de USD 19 trilhões, uma área de 19 milhões de km² e mais de 700 milhões de pessoas.

União EuropeiaMercosul
PIB – US$ 17,1 trilhõesPIB – US$ 2,2 trilhões
PIB per capita – US$ 38 milPIB per capita – US$ 7 mil
População – 449 milhõesPopulação – 307 milhões
Área territorial – 4 milhões de km²Área territorial – 15 milhões de km²

Objetivo 1: Comércio e investimento

Comércio

Claro que estamos falando de um casamento por dinheiro. O primeiro objetivo do acordo UE-Mercosul é “aumentar o comércio bilateral e os investimentos, além de reduzir barreiras tarifárias e não-tarifárias, especialmente para pequenas e médias empresas”. O compromisso econômico é também muito calcado em construir cadeias de suprimentos mais competitivas e seguras, incluindo segurança alimentar, de matérias-primas e de energia. Do nosso lado, ganhadores certos serão as indústrias de alimentos, minerais críticos e fontes de energia renovável.

A propósito, segue um link muito útil para quem quer fazer negócios com a Europa:
Exporting from the EU, importing into the EU – all you need to know. Segue também  link de um artigo sobre sustentabilidade competitiva, onde mostro a  sustentabilidade em ação que sai de relatórios e marketing somente e entra no coração do negócio.

Parcerias Comerciais
▪️ O Mercosul é o 10º maior parceiro em bens da UE
▪️ A UE é o 2º maior parceiro comercial em bens do Mercosul

Exportações bens (2022)
▪️ UE → Mercosul: € 55,7 bi
▪️ Mercosul → UE: € 53,7 bi

Comércio de Serviços (2022)
▪️ UE → Mercosul: € 28,2 bi
▪️ Mercosul → UE: € 12,3 bi

Principais produtos exportados
▪️ UE → Mercosul: Máquinas, químicos/farmacêuticos, transporte
▪️ Mercosul → UE: Minerais, alimentos/bebidas/tabaco, produtos vegetais

Investimentos

Também estamos falando de investimentos. O estoque de investimentos da Europa no Mercosul, que nos últimos dados disponíveis chegava a € 340 bilhões, deverá chegar, em algum tempo, a € 500 bilhões. Os investimentos em setores sustentáveis devem atrair a maior fatia. O continente tem uma oferta de capital abundante focada em sustentabilidade – 60% de todos os ativos financeiros da Europa hoje, €11 trilhões – estão investidos em ativos relacionados à sustentabilidade, segundo a empresa de informações de mercado Morningstar. E o foco do EU-Mercosul não deverá ser diferente.

O acordo já traz explicitamente o compromisso de investimentos no desenvolvimento de novas cadeias de valor sustentáveis, por exemplo, na Amazônia; e investimentos em energia renovável e na geração de valor agregado, por exemplo, em matérias-primas críticas, incluindo o processamento inicial e a produção de baterias. Além disso, o acordo destinará, por meio da iniciativa Global Gateway, € 1,8 bilhão em apoio da União Europeia “para a transição justa, verde e digital nos países do Mercosul”. O governo brasileiro pode – e deve – buscar mais do que esse € 1,8 bilhão dos € 300 bi disponíveis para investimentos sustentáveis no programa.

Recomendo que CFOs identifiquem onde estão essas fontes, como acessá-las, seja via dívida, seja via equity, e tirem vantagem delas. E que o BNDES possa apoiar a captação por meio dos novos instrumentos de garantia, seja de risco cambial, seja de risco soberano.

Estoques de investimento da UE no Mercosul (2021)
▪️ Total: € 340 bilhões

Objetivo 2: Regras estáveis e parceiros confiáveis

O segundo objetivo é “Criar regras previsíveis para comércio e investimentos e reforçar normas em áreas como: propriedade intelectual, segurança alimentar, concorrência e boas práticas regulatórias”. O acordo explicitamente fala que “impulsionará os laços comerciais e políticos estratégicos entre parceiros confiáveis”.

Confiança e previsibilidade são música para nossos ouvidos assustados. O texto do acordo nos relembra que, dos dez mais bem ranqueados países em termos de estabilidade da lei (rule of law) e governança, oito são países europeus. Entrando nessa parceria, temos que nos comprometer com essa estabilidade de regras também. Nós não somos os melhores nesse quesito. Esse compromisso tem que ser comprado por governo, sociedade civil, agências, legislativo e, é claro, judiciário.

Objetivo 3 – Valores: democracia e sustentabilidade

O terceiro objetivo é o mais calcado em princípios — que chamei de pauta civilizatória: promover valores conjuntos, como a democracia, o desenvolvimento sustentável, “reforçando os direitos dos trabalhadores, combatendo as mudanças climáticas, aumentando a proteção ambiental, incentivando a responsabilidade empresarial e mantendo altos padrões de segurança alimentar.”

Toda a pauta de sustentabilidade volta com força à agenda se esse acordo tomar as proporções que as autoridades brasileiras vêm indicando nos últimos dias. Nesse acordo, esses valores são inegociáveis e têm que ser um compromisso de Estado e não de governo. 

Conclusão

Como vimos, para fazer esse negócio promissor dar certo, os países do Mercosul — o Brasil, no nosso caso — precisam entender que a natureza desse novo parceiro é fundamentalmente diferente. É um casamento de muitas oportunidades, direitos e deveres econômicos, mas também de muitas obrigações e compromissos sociais, ambientais e políticos.

“‘O que’ você vai fazer é tão importante quanto o ‘como'”.

Não bastará o envolvimento de Comitês de Estratégia, CEOs e CFOs identificando oportunidades focadas apenas em vender ou captar recursos. Dessa forma, comitês de auditoria, de risco, sustentabilidade, jurídico e compliance precisam se juntar à tarefa desde o dia 1. Isso porque o “como” é definido por um conjunto de inúmeras regras do ecossistema regulatório de sustentabilidade.

Sejam regras da União Europeia — como obrigação de auditoria/due diligence social (trabalho, direitos humanos) e ambiental das cadeias produtivas (CSDDD), regulação anti-desmatamento (EUDR) e regras de classificação de investimentos sustentáveis (SFDR); sejam regras de cada país, como o Ato de Transparência da Noruega, a Lei da Obrigação de Vigilância da França e a Lei das Cadeias Produtivas da Alemanha.

Se não tivermos cuidado, podemos cair numa teia de protecionismo acidental. (No artigo Protecionismo do Bem explico um pouco mais como evitar os tropeços e aproveitar as oportunidades dessa regulação.)

Por fim, para países e governos, o “como” traz uma responsabilidade maior — ele define uma das principais regras de dissolução sumária desse casamento: o acordo EU-Mercosul é suspenso caso haja descumprimento das metas climáticas do Acordo de Paris.

E não menos importante: o acordo é terminado também caso haja ruptura democrática. Se no último artigo, em que falava da relevância da pauta social para a economia, comentei que os economistas se encontram com os sociólogos, neste, o encontro dos economistas é com os cientistas políticos. Sem democracia, nenhum caminho leva a Roma — ou a Bruxelas.